O DIA DA ESPIGA
Ritos pagãos e Cristãos dum Portugal antigo, onde se misturava o Paganismo com a Religião em rituais agricolas.
Texto: Português
Fonte: Do Tempo da Outra Senhora
O Dia da Espiga (2ª edição)
Esta é a 2ª edição do post, cuja 1ª edição,
datada de 6 de Março de 2010, foi agora ampliada com diversas
referências de literatura oral: adagiário português (4), superstições
populares (6) e cancioneiro popular (1). Foram igualmente adicionadas,
novas fontes bibliográficas (3).
Bilhete-postal ilustrado dos anos 20 do século XIX,
reproduzindo ilustração de A. Rey Colaço.
De
acordo com o calendário litúrgico cristão, na Quinta-Feira de Ascensão
comemora-se a ascensão de Cristo Salvador ao Céu, após ter sido
crucificado e ter ressuscitado. Esta data móvel encerra um ciclo de
quarenta dias após a Páscoa. Lá diz o adágio: "Da Páscoa à Ascensão, 40 dias vão."
Na
Quinta-Feira de Ascensão celebra-se igualmente o Dia da Espiga. Era
tradição e igualmente superstição [2], as pessoas irem para o campo
neste dia, para apanhar a espiga de trigo e outras plantas e flores
silvestres. Faziam um ramo que incluía pés de trigo e/ou centeio,
cevada, aveia, um ramo florido de oliveira, papoilas e margaridas.
O ramo
tinha um valor simbólico. Simbolizava a fecundidade da terra e a alegria
de viver. As espigas simbolizavam o pão e a abundância, as papoilas o
amor e a vida, o ramo de oliveira a paz e as margaridas o ouro, a prata e
o dinheiro.
Nalguns
locais, o ritual da colheita da espiga era muito preciso. Na 5ª Feira
de Ascensão, devia ir-se ao campo, do meio-dia para a uma hora, colher
flores de oliveira, espigas de trigo e flores amarelas e brancas, tudo
em número de cinco. Deviam rezar-se igualmente cinco Padres-Nossos,
cinco Ave Marias e cinco Gloria Patres, para que durante o ano, houvesse
sempre em casa, azeite, ouro e prata. [6]
De
acordo com a tradição, o ramo devia ser pendurado dentro de casa, na
parede da cozinha ou da sala, aí se conservando durante um ano, até ser
substituído pelo ramo do ano seguinte. Havia a crença que o ramo
funcionava como um poderoso amuleto que trazia a abundância, a alegria, a
saúde e a sorte. Lá diz o adágio: "Quem tem trigo da Ascensão, todo o ano terá pão." E porquê? Porque se acredita naquilo que diz o cancioneiro popular alentejano:
"Tudo vai colher ao campo
Quinta-feira d'Ascensão,
trigo, papoila, oliveira.
p'ra que Deus dê paz e pão." [4]
"Quinta-feira de Ascensão
As flores têm virtudes,
Quis amar teu coração,
Fiz empenho mas não pude." (Évora) [3]
Estava
de resto, arreigada a superstição de que era bom colher certas flores e
plantas medicinais na Quinta-Feira de Ascensão, antes do nascer do Sol.
[2] Existia igualmente a crença de que os ovos postos pelas galinhas,
entre o meio-dia e a uma hora da Quinta-Feira de Ascensão, nunca
apodrecem e têm a virtude de curar doenças e suprimir dores. [2]
Acreditava-se também que o queijo feito na Quinta-Feira de Ascensão era
medicamento eficaz contra as sezões. [1] Existia ainda o convencimento
de que o vento que na Quinta-feira de Ascensão, soprasse à uma hora da
tarde, era o que sopraria durante todo o ano. Existia finalmente a
convicção de que era bom comer carne na Quinta-Feira de Ascensão, de
acordo com adágio:
“Em Quinta-Feira de Ascensão,
Quem não come carne
Não tem coração;
Ou de ave de pena,
Ou de rês pequena.” [2]
A
origem festiva do Dia da Espiga, coincidente com a Quinta-Feira da
Ascensão, é muito anterior à era cristã. Na verdade, este dia é um
sucessor claro de rituais pagãos, praticados durante séculos, por todo o
mundo mediterrâneo, em que grandiosos festivais de cantares e danças,
celebravam a Primavera e consagravam a natureza. Neles se exortava o
eclodir da vida vegetal e animal, após a letargia dos meses frios, bem
como a esperança nas novas colheitas. O Dia da Espiga era assim como que
uma bênção aos primeiros frutos e marcava o início da época das
colheitas.
A
Igreja, à semelhança do que fez com outras ancestrais festas pagãs,
cristianizou o Dia da Espiga. A data atravessa assim os tempos com uma
dupla significação:
- como Quinta-feira de Ascensão, para os cristãos, assinalando, a ascensão de Jesus ao Céu, ao fim de 40 dias;
- como Dia da Espiga, traduzindo aspectos e crenças não religiosos, mas exclusivos da esfera agrícola e familiar.
Bilhete-postal ilustrado do 2º quartel do século XIX, edição A.V.L. (Lisboa),
reproduzindo aguarela de Alfredo Moraes (1872-1971).
Actualmente
poucas são as pessoas que ainda se deslocam ao campo na Quinta-Feira da
Ascensão para apanhar o ramo da espiga. Mas aquelas que vão, têm
dificuldade em constituir o ramo, sobretudo pela dificuldade em recolher
pés de cereal, raros a partir do momento em que os nossos agricultores
receberam dinheiro de Bruxelas para deixar de cultivar. Apesar de tudo,
há quem consiga cumprir a tradição. E há também quem faça negócio com a
tradição, colhendo e vendendo ramos de espiga na cidade. Apesar do
mercantilismo deste biscate em tempo de crise, é um contributo para a
preservação da tradição. Actualmente, também são poucas as pessoas que
se deslocam à Igreja para participar nos deveres religiosos inerentes à
data. Todavia, houve tempos em que a data, das mais festivas do ano, era
repleta de cerimónias sagradas e profanas, que chegavam a implicar a
paralisação laboral. Existia mesmo a crença que em Quinta-Feira de
Ascensão, os passarinhos não vão aos ninhos. [1] Daí também o adágio: “No Dia da Ascensão nem os passarinhos bolem nos ninhos”, o que está de acordo com o cancioneiro popular:
“Se os passarinhos soubessem
Quando é dia d'Ascensão,
Nem subiam ao seu ninho,
Nem punham o pé no chão.” [5]
Existia
igualmente a crença de que na Quinta-Feira de Ascensão, os pássaros não
iam ao ninho desde o meio-dia até à uma hora, que era o período de
orações nas festas da Igreja. Consta, que antigamente, finalizadas essas
orações, era costume soltarem-se passarinhos do coro e das tribunas, e
espargirem-se flores desfolhadas sobre os fiéis. [6]
Por
vezes chove na Quinta-feira de Ascensão, o que originou a convicção de
que em chovendo na tarde de Quinta-Feira de Ascensão, as nozes apodrecem
e os frutos sairão pecos. [6] O adagiário, regista, de resto a crença
de que “Água d'Ascensão, tira o vinho e dá o pão”, assim como “Chuvinha da Ascensão, dá palhinha e dá pão” e também “Quinta-feira da Ascensão, coalha a amêndoa e o pinhão”.
.Hernâni Matos
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