sexta-feira, 30 de maio de 2014

LENDAS DE PORTUGAL: A LENDA DA POMBA BRANCA

Lendas e Mistérios
A LENDA DA POMBA BRANCA
Uma história de amor que foi real e que se tornou em mais uma das nossas lendas que nos enriquecem culturalmente.

Texto: Português

A LENDA DA POMBA BRANCA 

Encostada na sua cadeira de espaldar dourada, a rainha de Castela, Dª. Maria, esposa de Afonso XI e filha de Afonso IV de Portugal, meditava profundamente.

Tinham sido muitas as afrontas sofridas a seu esposo depois que Leonor de Gusmão surgira na sua vida. Muitas! Mas ela continuava a amar Afonso como na primeira hora em que o vira e dera graças a Deus por ser sua esposa. Daí o seu sofrimento, talvez já sem remédio.

Fechando os olhos, a rainha revivia todos os momentos felizes deixados para trás, espezinhados pela arrogância de uma outra mulher que surgira no único intuito de lhe roubar o que de mais caro tinha na vida: o amor do seu esposo.
Certo era que Afonso XI tinha feitio petulante e irrequieto, por vezes mesmo desordeiro. E os grandes guerreiros são fatalmente amorosos, por temperamento
.
Suspirava a rainha. Embora tudo fizesse para trazer ao de cima das suas recordações apenas os bons momentos, os momentos felizes da sua vida, os dolorosos, aqueles que mais a deprimiam, acabavam sempre por se impor como súbito vendaval. E então surgia ela, a outra, essa D. Leonor de Gusmão, rindo-se no seu próprio rosto da sua situação indesejável.
A última cena entre elas vivida, aquela que a fizera refugiar-se junto de seu pai e sob o céu de Portugal, surgia como monstro marinho nas águas límpidas e até aí repousantes do lago das suas boas recordações.
Era quase noite. Como se lembrava bem! Acabara de sair o mensageiro que trouxera a nova da vitória em frente ao cabo de S. Vicente, em que os portugueses tinham sido derrotados. Tão contente ficara Afonso de Castela que, embora adoentado, parecera ressurgir, como se fosse possível sarar de súbito. Todos os nobres castelhanos correram a saudar o seu rei e a fazer-lhe sentir a expressão do seu contentamento.
Ela não quisera deixar de aparecer a seu esposo. Seu pai perdera essa batalha, não o esquecia. Mas tinha vencido em muitas outras. E se Portugal era a sua pátria por nascimento, Castela era a sua morada e a pátria de seu esposo muito amado.
Comunicou ao rei que desejava falar-lhe. Longe dos seus beijos, dos seus carinhos, talvez nessa hora de alegria a olhasse com menos indiferença. Mas o rei castelhano mandara dizer-lhe que, se desejava falar-lhe, fosse ela ter com ele à sala comum onde habitualmente passava as horas de ócio quando se encontrava no palácio.
Recordava a rainha a sua aparição nessa sala. O olhar interrogativo do rei, a expressão trocista de Leonor. Sim, Leonor estava lá. E recordava ainda, como se estivesse a ouvi-las nesse momento, as frases que então foram trocadas. Perguntara o rei: «Que me desejais, Senhora?» Um pouco de orgulho fê-la responder: «Como vossa esposa e rainha de Castela, venho congratular-me pela vitória que alcançastes, mas algo mais quero dizer-vos. A sós!»
Ouviu, como o disparar de flecha incendiada pelo ódio, a gargalhada seca de Leonor e a sua mordaz advertência:
 — «Cuidado, Senhora! Estais a esquecer neste momento vosso pai e vossa pátria!»
Sentiu-se irada e impôs silêncio: «Calai-vos! Se aqui existe alguma estrangeira, sois vós e não eu! Esta casa não vos pertence!»
O rei sorria. Sorria mas ela sabia bem como ele estava inquieto.
Leonor tornara:
— «Como vos enganais, Senhora! Sou castelhana de nascimento. Amo e sou amada por um castelhano. E se aqui estou é porque o amor exige a minha presença. E vós? Onde nascestes? Quem vos ama?»
Era demais! Aquela insolência fora demasiado longe. D. Maria olhara o esposo com os olhos rasos de lágrimas e suplicara:
«Senhor! Mandai-a sair daqui enquanto vos falo!»

Como lhe parecera longo esse pequeno silêncio que então se seguira! Como falaram bem alto aqueles olhares trocados no meio da maior emoção. Mas a cólera entrou então no olhar do rei e ele teve a ousadia de exclamar:
«Senhora! Neste dia de tanta alegria para mim, se alguém está a mais nesta sala, sois vós, a filha de Afonso IV de Portugal!»

Fora como se uma grande pedra lhe tivesse desabado sobre a cabeça. Fugira dali para não cair no chão diante da sua rival e aos pés do seu ingrato esposo! E porque não mais quiseram saber dela, tratando-a como se na verdade fosse uma intrusa no seu próprio palácio, fugira também de Castela e viera refugiar-se nesse cantinho que a vira nascer, sob o céu azul, muito azul do seu Portugal.

Tão envolvida estava nos seus tristes pensamentos, a pobre rainha, que nem deu pela presença de alguém que, tossindo, tentava atrair o olhar de D. Maria e obter permissão para entrar na sua salinha predilecta. Foi necessário que o cavaleiro falasse alto para que ela se apercebesse de que já não estava só.
— Senhora! Perdoai a minha insistência em comunicar convosco, mas o assunto é urgente.
A rainha voltou-se.
— Ah, sois vós, D. Bernardo? Entrai!
Beijando-lhe as mãos, o cavaleiro curvou-se respeitosamente:
— Senhora! Lamento ter de furtar ao vosso repouso alguns momentos de atenção.
Sorriu a rainha com triste doçura:
— Dizei, D. Bernardo. Ainda valho algo para alguém?
Arrependeu-se logo desta fraqueza, mas já D. Bernardo lhe respondia com a galhardia de um verdadeiro fidalgo:
— É na qualidade de rainha de Castela e filha do rei de Portugal que vos procuro. Vede, pois, o quanto preciso de vós!
A rainha baixou o olhar, para que o fidalgo não lhe visse as lágrimas que molhavam já as suas longas pestanas e pediu:
— Falai, nobre amigo!
Respirou fundo o cavaleiro. Depois perfilando-se, disse com certa solenidade:
— Senhora! A guerra e o ódio que entrou em terras de Portugal e Castela é um monstro que pode levar à ruína qualquer destas nações!
Sumidamente, a rainha concordou:
— Tendes razão, D. Bernardo!
O cavaleiro prosseguiu:
— Os Mouros, que já descobriram esse ódio que alimenta os reis de Portugal e Castela, estão a tentar aproveitar-se dele para caírem sobre este lado do mundo cristão. O perigo é eminente. É necessário fazer algo para o dissipar!
A rainha abanou a cabeça num desalento.
— Nada os demove!
A voz do fidalgo elevou-se, embora com respeito:
— Senhora! O povo está a ser prejudicado com o ódio que separa os dois reis. D. Afonso IV não perdoa a D. Afonso XI o que ele vos fez!
A rainha curvou a cabeça. O fidalgo insistiu:
— Precisamos de vós, Senhora!
Olhou D. Maria o cavaleiro com certa surpresa:
— E que posso eu fazer?
— Suplicar a el-rei vosso pai que não destrua o reino e a vida de vosso esposo. Por meu lado, já mandei a Roma alguém que falará ao Papa e tentará junto do rei de Castela uma reconciliação.
— E achais que meu pai me atenderá?
— É uma esperança!
— Tentarei!

Em vão chorou a filha de Afonso IV. Em vão suplicou ao rei que cessasse a guerra com Castela e olhasse para o povo. D. Afonso IV não a atendeu. Antes mais lhe revolveu a ferida aberta em seu coração, relembrando-lhe os maus tratos por ela recebidos de seu esposo e as honras de rainha que estavam sendo dadas em Castela a D. Leonor de Gusmão.
Fracassada, abatida, D. Maria voltou a refugiar-se na sua simples mas elegante salinha, e D. Afonso saiu uma vez mais a juntar gente para outra sortida por terras de Espanha.
Desta vez foi a hora da Galiza conhecer o furor de Afonso IV, o Bravo. Cidades incendiadas, campos destruídos, casas saqueadas, e feridos, e mortos por todo o lado! O ódio continuava a comandar o gesto dos dois Afonsos. E entretanto, as novas que chegavam de África eram cada vez mais alarmantes!

O Sol começara a descer, mas a rainha de Castela estava ainda de joelhos a orar.
— Senhor! Acalmai meu pai e o meu esposo! Fazei, Senhor, que eles compreendam que o bem-estar do povo deve valer mais para eles do que os seus próprios sentimentos! Já não Vos peço, Senhor, que Afonso meu esposo volte a amar-me e a fazer-me feliz, repudiando a outra! Suplico-Vos apenas que esta guerra sem quartel possa ter um fim! Os Mouros, ao que nos dizem, preparam-se para atacar Castela em grande força! Salvai Afonso e o seu povo! Salvai-nos a todos, Senhor, pela Vossa Misericórdia! E se virdes que posso merecer-Vos alguma atenção, enviai-me um sinal, para que sinta alento na espera destes meus longos dias!
Calou-se a rainha, de olhos enxutos. Nem sempre as lágrimas deslizavam pelo seu rosto. Mas nem por isso o seu sofrimento era menor. No peito, uma espécie de mão invisível apertava-a como se a quisesse esmagar. E o ar, subitamente raro, não passava pelos seus lábios. Sofria, a rainha! Sofria por Portugal e Castela!...

De súbito, algo veio sobressaltar a esposa desprezada por Afonso XI. Algo de belo, de harmonioso, como arauto do Céu, trazendo a Esperança! Sobre o parapeito de pedra da janela aberta da salinha elegante e sossegada, uma pomba branca veio pousar. Uma pomba trazendo no bico um raminho de oliveira!
Alegrou-se a rainha. E, desta vez com o rosto banhado em pranto, voltou a orar a Deus, mas numa oração sem palavras, onde todo o seu pensamento se elevava, puríssimo! A paz seria firmada entre Portugal e Castela.
Mas como?
Deixou a rainha de orar. Voltou o seu pensamento, descendo do Céu à Terra. Seu pai dissera-lhe, havia pouco tempo ainda, que a paz entre Portugal e Castela só seria possível se, entre as exigências a que tinha jus, o rei de Castela acatasse e aceitasse a de desterrar da sua corte e da sua vida Leonor de Gusmão e restituir essa mesma corte à rainha D. Maria.
Seria isso possível? Se o era, bendita essa pomba branca, mensageira de Deus e da paz para os dois reinos e para a sua alma atormentada! Não se enganara D. Maria ao acreditar que a pomba branca tinha sido o sinal de Deus simbolizando a esperança para a paz entre os dois países vizinhos, pois essa paz foi possível!

Ao saber que D. Afonso IV, desesperado com as loucuras feitas pelos Castelhanos e com as suas próprias loucuras, tinha renovado com o novo rei de Aragão a liga havida antes no intuito de atacar Castela por todos os lados, resolveu-se D. Afonso XI a ouvir as súplicas do enviado do Papa. Escreveu então ao rei de Portugal para que este lhe enviasse embaixadores a Castela, que pela sua parte escolheria os nobres que, com esses mesmos embaixadores portugueses, combinariam a paz.
E o tratado foi concluído e assinado. Tratado duro para o rei de Castela, mas que ele soube cumprir como rei e como homem.

Assim, D. Leonor de Gusmão foi afastada da corte e nela reentrou, serena mas, no íntimo, altamente comovida, a rainha D. Maria, filha do rei de Portugal.
Não se arrependeu Afonso XI desse gesto.
Breve, muito breve mesmo, teve o rei de Castela ocasião de cair aos pés de Maria e pedir-lhe que fosse a Portugal suplicar a seu pai socorro para terras de Castela. Os mouros de África avizinhavam-se das praias da Península com muitos milhares de homens e cavalos para uma invasão em forma.
D. Afonso IV ouviu, desta vez, as preces da filha. E ajuntando homens, cavalos e naus, dirigiu-se a Espanha, onde foi recebido como enviado do Céu. A Portugal pertenceu, então, a vitória da célebre batalha do Salado.
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Fonte Biblio MARQUES, Gentil Lisboa, Lendas de Portugal, Círculo de Leitores, 1997 [1962], p.Volume V, pp. 359-363

ADENDA;
Esta lenda tem muito pouco de lenda, porque de verdade, tem tudo!
Os factos históricos acima relatados  aconteceram na realidade.  Um dos motivos porque D.Afonso IV aceitou que, por razões de Estado, se matasse  a Dª.Inês de Castro, tinha muito a ver com a sucessão do trono de Castela que estava a  pender mais para o lado dos filhos da barregã  Leonor de Gusmão, com a aceitação de Afonso XI, e não do filho Pedro gerado pela Rainha D.Maria, quer dizer, do  neto de "O BRAVO".
Por isso, D.Afonso IV resolveu matar pela raiz esse problema no seu reino, tornando bastardos os 3 filhos (D.João, D.Dinis e Dª. Beatriz) da infeliz Inês, portanto, sem direito à sucessão do trono.

Sobre a vitória da batalha do Salado - nome de um pequeno rio que fica um pouco a sul de Sevilha -  onde o nosso BRAVO se cobriu de glória, falarei disso num dos próximos episódios até porque, ajudando Castela, o nosso Rei também se ajudou a si mesmo porquanto, se os mouros entrassem por Castela dentro... também poderiam vir até nós, e lá se ia o Algarve...pelo menos.

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