terça-feira, 13 de maio de 2014

A LENDA DO ESCORRUPICHA E DA CABICANCA - AGUIAR DA BEIRA


Lendas & Mistérios

A LENDA DO ESCORRUPICHA E DA CABICANCA - AGUIAR DA BEIRA
O nosso País é rico em belas lendas antigas que se confundem com a realidade e se perdem nas brumas do tempo. Aqui revelo uma delas.

* José Rui Lira









 
Ao pé da capella de Nossa Senhora do Castello estão as ruinas de um castello romano, de cantaria. Tambem perto d’esta capella existiu a egreja de S. Pedro (ainda existem as ruinas da antiga matriz e da respectiva residencia n’um pequeno valle, ainda chamado de S. Pedro, ao sul da villa) antiga matriz da freguezia, que por ser distante da villa, e por se partir a commenda de Christo (do real padroado) metade para Santo Eusebio de Aguiar e metade para S. Pedro de Coruche, foi abandonada, erigindo-se em egreja parochial a de Santo Eusebio.
As más linguas, porém, attribuem o abandono da egreja de S. Pedro ao apparecimento da cabicanca, celeberrima a medonha passarola, que atterrou os aguiarenses.

Conta-se assim o caso.
Appareceu aqui, ha seculos, uma cegonha que foi fazer o seu ninho na torre da egreja matriz (S. Pedro) como é do costume d’estas aves. O povo ficou horrorisado á vista de tão monstruoso passaro (a que deu o nome de cabicanca) e não só deixou de ir alli á missa, mas até de transitar por aquelles sitios. O mesmo parocho fugiu da residencia com a sua familia, e foi celebrar os officios divinos na capella de Santo Eusebio, ao N. da villa e actual matriz. Andava o povo assim atterrado, quando aconteceu passar por alli Martinho Affonso (de alcunha Escorrupicha, e de profissão almocreve) armado de uma espingarda, arma recentemente descoberta.

Vendo elle que a villa estava mergulhada em profunda magua, desamparando o povo d’ella a agricultura, os negocios, os divertimentos etc., etc., e curando sómente de se preparar para o juizo final, que julgava proximo, se compadeceu de tanta desgraça e prometteu dar-lhe remedio. Dirige-se á igreja, espera que o passaro saia do ninho, aponta, dispara e... zás! ferra com a cabicanca estatelada morta no meio do chão. O povo, ao estrondo do tiro e aos gritos victoriosos do cabicanquicida, corre em tropel a ver o enorme bico, o esgalgado pescoço, as longas pernas e o feio corpo do bicho. Todos o queriam ver ao mesmo tempo, pelo que houve pancadaria a valer (e dizem alguns que houve até mortes, mas o auto da cabicanca não o diz).

Não se póde descrever a alegria d’esta gente, nem as festas que fizeram a Martinho Affonso, que foi levado em triumpho por toda a villa, dando-se os mais freneticos vivas, muitos presentes e grande numero de garrafas de vinho (de que o almocreve pelos modos era grande amador) dizendo-lhe todos «escorrupicha» e elle escorrupichava, e d’isto lhe ficou a alcunha de Escorrupicha.
Passados oito dias das mais estrondosas demonstrações de jubilo e agradecimento, se foi o bom do meu amigo Escorrupicha seguindo a sua jornada, coberto de presentes, coroado dos louros da victoria e com um nome immortal que irá de geração em geração até á mais remota posteridade. 

O parocho ficou pedindo em todos os domingos um padre nosso por Martinho Affonso, o destruidor da cabicanca. Advirto porém aos que forem a Aguiar da Beira e tiverem amor ás costellas, que não fallem alli na cabicanca nem no escorrupicha, senão, depois não se queixem!


Fonte Biblio PINHO LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de Portugal Antigo e Moderno Lisboa, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 2006 [1873] , p.tomo I, p. 38-39

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