CÁTAROS - ALGUNS CONCEITOS E RITUAIS - II
Texto: Português
Fonte: ATI
Cátaros VI
(...)
A Bíblia de Jerusalém identifica o Paráclito com o Espírito Santo e o Espírito da Verdade como "revelador e princípio da verdadeira religião", em "oposição ao Príncipe deste mundo, que é 'pai da mentira'". Estamos, pois, em pleno sistema dualista. E quem seria ou o que seria esse "outro" Paráclito? Houve algum antes dele? Seria o próprio Cristo em outra etapa de manifestação, em novo cenário?
O Paráclito "vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos disse".
Os comentaristas da Bíblia de Jerusalém não escondem a dificuldade que o texto oferece.
Acena do lava-pés [lê-se emanota/J, que analisa o módulo intitulado "A despedida" (p. 1404, Edições Paulinas, 1981)] e as palavras que o acompanham constituem um prelúdio a longos colóquios entre Jesus e seus discípulos. Em sua forma atual os caps. 13 a 17 reúnem, certamente, os ensinamentos dados em outras ocasiões. O cap. 16, bastante complexo, não seria uma nova versão das palavras de Jesus no cap. 14? Relatando-as aqui Jo(ão) quer revelar o sentido profundo de toda a vida de Jesus, no mometo em que ele passa de sua existência terrestre à celeste.
E' certo que Jesus estaria reiterando nessa conversa final ensinamentos dados em outras oportunidades. De minha parte, entendo, porém, que tais oportunidades seriam posteriores à sua morte, ou seja, estaria falando nelas o Cristo póstumo, não ressuscitado como quer a Igreja, mas sobrevivente à morte e manifestado mediunicamente entre seus seguidores que permaneceram no mundo para dar continuidade à sua obra.
Nesse sentido, portanto, o capítulo 16 poderia ser, de fato, nova versão dos ensinamentos que figuram nos capítulos que o antecedem. A posição em que se coloca é diferente daquela que assumira quando ainda 'vivo' entre eles. "Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que seu amo faz; mas eu vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer."
E mais: Jesus não foi escolhido por eles; ele é quem os escolheu. Ao reiterar a vinda do Paráclito, contudo - em 15,26 -, a colocação é algo diferente. Não mais pedirá ao Pai que o envie, mas afirma que o enviará "de junto do Pai" e que seria o Espírito da Verdade, que vem do Pai e que daria testemunho dele, Jesus, confirmando o que lhes havia sido ensinado.
Significativamente, o capítulo 16 começa com a enfática afirmativa de que não dissera aquilo "desde o começo porque estava convosco". E continua: "Agora, porém, vou para aquele que me enviou."
Ao declarar isto - ao que parece, pela segunda vez, já como entidade espiritual sobrevivente -, nota que a declaração não causa o impacto que causara antes, de vez que "nenhum de vós me pergunta: Para onde vais?" Antes, "a tristeza encheu vossos corações"; agora, parece que todos entendem melhor a situação, mesmo porque o Cristo declara que, se ele não se fosse, o Paráclito não viria, pois era ele quem o enviaria. Ou, quem sabe, seria ele próprio em outra manifestação objetiva entre nós?
E' legítima a queixa dos comentaristas da Bíblia de Jerusalém: os versículos que se seguem têm, de fato, sentido obscuro. De qualquer modo, é da maior relevância a vinda do Paráclito ou Espírito da Verdade, de vez que essa entidade ou doutrina programada para reiterar os ensinamentos do Cristo "vos conduzirá se ele (16,13) — à verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o tiver ouvido e vos anunciará coisas futuras".
Não se trata, portanto, de ensinamentos novos, mas da verdade plena, ou de uma ampliação do que já havia sido dito dentro dos limites impostos pela compreensão imperfeita dos discípulos daquela época.
Como em todo esse episódio paira o tom melancólico da despedida e da ausência, a temática do consolo prevalece e continua sendo a tônica do pronunciamento. "Um pouco de tempo e já não me vereis - lê-se em 16,19 e seguintes. Mais um pouco ainda e me vereis. Em verdade, chorareis e vos lamentareis, o mundo se alegrará. Vós vos entristecereis, mas a vossa tristeza se transformará em alegria."
Prevalece nesse discurso a clara evidência de que o Cristo fala situado em a dimensão da vida, da qual confronta o que disse quando 'vivo' - se assim podemos dizer - com o que afirma agora, depois de 'morto' e sobrevivente, atra¬vés dos recursos da comunicabilidade entre vivos e mortos.
"Disse-vos estas coisas por figuras - declara em 16,24. - Chega a hora em que não vos falarei mais em figuras, mas claramente vos falarei do Pai."
A nota de rodapé, neste ponto, me parece fora do tom e talvez a própria tradução. Minha leitura pessoal seria esta: "Antes, quando aí estava entre vós, fa-lei-vos figurativamente, agora, no entanto, do outro lado da vida, é chegada a hora de não mais falar figurativamente, e sim com toda a clareza objetiva da verdade."
Tanto é assim que, após algumas expressões ainda obscuras - teriam sido acrescentadas posteriormente? Ou modificadas? -, o texto conclui: "Saí do Pai e vim ao mundo; de novo deixo o mundo e vou para o Pai."
Os próprios discípulos reconhecem, afinal, que ele deixou de falar em metáforas e declaram: "Eis que agora falas claramente, sem figuras! Agora vemos que sabes tudo e não tens necessidade de que alguém te interrogue."
Apesar da tristeza da partida, da inevitável separação, há um momento de alegria, de conforto, de paz, de consolo. A beleza do momento transparece na poesia do texto: "Credes agora? - pergunta o Mestre -. Eis chegada a hora - e ela soou - em que vos dispersareis, cada um para o seu lado, e me deixareis sozinho. Mas eu não estou só, porque o Pai está comigo. Eu vos disse estas coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações, mas tende coragem; eu venci o mundo!". Ou seja, tudo irá depender, no futuro, do Paráclito - o Consolador, o Espírito da Verdade - e, ao mesmo tempo em que informa que os apóstolos não o verão mais, declara que virá de novo buscá-los para um 'lugar' onde todos estejam reunidos nele e em Deus.
Qual o sentido oculto disto, senão o de que não o verão mais como Jesus, o Cristo, mas que ele retornará pessoalmente, ou com uma reiteração dos seus ensinamentos, na figura do Paráclito, o Consolador ou Espírito da Verdade? E até nisso, e, portanto, do princípio ao fim, a tónica de todo esse texto é a do consolo, da esperança, para que todos tenham confiança, creiam, amem-se entre si e ao próximo, porque a hora final da redenção chegará um dia para todos.
Os cátaros estavam certos na sua lúcida preferência pelo Evangelho de João. E o consolamento para eles era o sacramento supremo, porque relembrava as maravilhosas promessas de um futuro de harmonia, sabedoria e paz, ainda que conquistado a duras penas nas muitas vidas em um mundo hostil, no qual predominam as dores do aprendizado.
Estariam os cátaros convictos que a promessa da vinda do Paráclito se realizava com eles, nos difíceis tempos que viviam no Sul da Europa? É possível. Ou ainda, esperavam – na para um tempo futuro, quando o "louro voltasse a reverdecer", como escreveu o poeta occitano?
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A Bíblia de Jerusalém identifica o Paráclito com o Espírito Santo e o Espírito da Verdade como "revelador e princípio da verdadeira religião", em "oposição ao Príncipe deste mundo, que é 'pai da mentira'". Estamos, pois, em pleno sistema dualista. E quem seria ou o que seria esse "outro" Paráclito? Houve algum antes dele? Seria o próprio Cristo em outra etapa de manifestação, em novo cenário?
O Paráclito "vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos disse".
Os comentaristas da Bíblia de Jerusalém não escondem a dificuldade que o texto oferece.
Acena do lava-pés [lê-se emanota/J, que analisa o módulo intitulado "A despedida" (p. 1404, Edições Paulinas, 1981)] e as palavras que o acompanham constituem um prelúdio a longos colóquios entre Jesus e seus discípulos. Em sua forma atual os caps. 13 a 17 reúnem, certamente, os ensinamentos dados em outras ocasiões. O cap. 16, bastante complexo, não seria uma nova versão das palavras de Jesus no cap. 14? Relatando-as aqui Jo(ão) quer revelar o sentido profundo de toda a vida de Jesus, no mometo em que ele passa de sua existência terrestre à celeste.
E' certo que Jesus estaria reiterando nessa conversa final ensinamentos dados em outras oportunidades. De minha parte, entendo, porém, que tais oportunidades seriam posteriores à sua morte, ou seja, estaria falando nelas o Cristo póstumo, não ressuscitado como quer a Igreja, mas sobrevivente à morte e manifestado mediunicamente entre seus seguidores que permaneceram no mundo para dar continuidade à sua obra.
Nesse sentido, portanto, o capítulo 16 poderia ser, de fato, nova versão dos ensinamentos que figuram nos capítulos que o antecedem. A posição em que se coloca é diferente daquela que assumira quando ainda 'vivo' entre eles. "Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que seu amo faz; mas eu vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer."
E mais: Jesus não foi escolhido por eles; ele é quem os escolheu. Ao reiterar a vinda do Paráclito, contudo - em 15,26 -, a colocação é algo diferente. Não mais pedirá ao Pai que o envie, mas afirma que o enviará "de junto do Pai" e que seria o Espírito da Verdade, que vem do Pai e que daria testemunho dele, Jesus, confirmando o que lhes havia sido ensinado.
Significativamente, o capítulo 16 começa com a enfática afirmativa de que não dissera aquilo "desde o começo porque estava convosco". E continua: "Agora, porém, vou para aquele que me enviou."
Ao declarar isto - ao que parece, pela segunda vez, já como entidade espiritual sobrevivente -, nota que a declaração não causa o impacto que causara antes, de vez que "nenhum de vós me pergunta: Para onde vais?" Antes, "a tristeza encheu vossos corações"; agora, parece que todos entendem melhor a situação, mesmo porque o Cristo declara que, se ele não se fosse, o Paráclito não viria, pois era ele quem o enviaria. Ou, quem sabe, seria ele próprio em outra manifestação objetiva entre nós?
E' legítima a queixa dos comentaristas da Bíblia de Jerusalém: os versículos que se seguem têm, de fato, sentido obscuro. De qualquer modo, é da maior relevância a vinda do Paráclito ou Espírito da Verdade, de vez que essa entidade ou doutrina programada para reiterar os ensinamentos do Cristo "vos conduzirá se ele (16,13) — à verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o tiver ouvido e vos anunciará coisas futuras".
Não se trata, portanto, de ensinamentos novos, mas da verdade plena, ou de uma ampliação do que já havia sido dito dentro dos limites impostos pela compreensão imperfeita dos discípulos daquela época.
Como em todo esse episódio paira o tom melancólico da despedida e da ausência, a temática do consolo prevalece e continua sendo a tônica do pronunciamento. "Um pouco de tempo e já não me vereis - lê-se em 16,19 e seguintes. Mais um pouco ainda e me vereis. Em verdade, chorareis e vos lamentareis, o mundo se alegrará. Vós vos entristecereis, mas a vossa tristeza se transformará em alegria."
Prevalece nesse discurso a clara evidência de que o Cristo fala situado em a dimensão da vida, da qual confronta o que disse quando 'vivo' - se assim podemos dizer - com o que afirma agora, depois de 'morto' e sobrevivente, atra¬vés dos recursos da comunicabilidade entre vivos e mortos.
"Disse-vos estas coisas por figuras - declara em 16,24. - Chega a hora em que não vos falarei mais em figuras, mas claramente vos falarei do Pai."
A nota de rodapé, neste ponto, me parece fora do tom e talvez a própria tradução. Minha leitura pessoal seria esta: "Antes, quando aí estava entre vós, fa-lei-vos figurativamente, agora, no entanto, do outro lado da vida, é chegada a hora de não mais falar figurativamente, e sim com toda a clareza objetiva da verdade."
Tanto é assim que, após algumas expressões ainda obscuras - teriam sido acrescentadas posteriormente? Ou modificadas? -, o texto conclui: "Saí do Pai e vim ao mundo; de novo deixo o mundo e vou para o Pai."
Os próprios discípulos reconhecem, afinal, que ele deixou de falar em metáforas e declaram: "Eis que agora falas claramente, sem figuras! Agora vemos que sabes tudo e não tens necessidade de que alguém te interrogue."
Apesar da tristeza da partida, da inevitável separação, há um momento de alegria, de conforto, de paz, de consolo. A beleza do momento transparece na poesia do texto: "Credes agora? - pergunta o Mestre -. Eis chegada a hora - e ela soou - em que vos dispersareis, cada um para o seu lado, e me deixareis sozinho. Mas eu não estou só, porque o Pai está comigo. Eu vos disse estas coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações, mas tende coragem; eu venci o mundo!". Ou seja, tudo irá depender, no futuro, do Paráclito - o Consolador, o Espírito da Verdade - e, ao mesmo tempo em que informa que os apóstolos não o verão mais, declara que virá de novo buscá-los para um 'lugar' onde todos estejam reunidos nele e em Deus.
Qual o sentido oculto disto, senão o de que não o verão mais como Jesus, o Cristo, mas que ele retornará pessoalmente, ou com uma reiteração dos seus ensinamentos, na figura do Paráclito, o Consolador ou Espírito da Verdade? E até nisso, e, portanto, do princípio ao fim, a tónica de todo esse texto é a do consolo, da esperança, para que todos tenham confiança, creiam, amem-se entre si e ao próximo, porque a hora final da redenção chegará um dia para todos.
Os cátaros estavam certos na sua lúcida preferência pelo Evangelho de João. E o consolamento para eles era o sacramento supremo, porque relembrava as maravilhosas promessas de um futuro de harmonia, sabedoria e paz, ainda que conquistado a duras penas nas muitas vidas em um mundo hostil, no qual predominam as dores do aprendizado.
Estariam os cátaros convictos que a promessa da vinda do Paráclito se realizava com eles, nos difíceis tempos que viviam no Sul da Europa? É possível. Ou ainda, esperavam – na para um tempo futuro, quando o "louro voltasse a reverdecer", como escreveu o poeta occitano?
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