sábado, 6 de dezembro de 2014

A LENDA DE FIGUEIREDO DAS DONAS

Lendas & Mistérios
A LENDA DE FIGUEIREDO DAS DONAS
Aqui fica revelada mais uma das lindas lendas do nosso querido Portugal. País de estórias, história e lendas lindíssimas em risco de se perderem para sempre, e que constituem um riquíssimo tesouro cultural, que perdura ainda periclitante, na tradição oral do nosso Povo !

Texto: Português
Fonte: Portugal Glorioso

Lenda de Figueiredo das Donas



Pesado era o tributo que nesse tempo longínquo pagava anualmente orei Mauregato(1) ao emir de Córdova.(2) Pesado e já então inconcebível: cem donzelas escolhidas entre as mais formosas de Portugal e Espanha.(3)

Em casa de D. Ramiro(4) — velho fidalgo, cujo nome era conhecido e respeitado pela sua bondade e pelas suas heróicas façanhas no tempo em que tinha menos idade — reinava um atroz desespero. Sua filha única, a formosíssima D. Mécia,(5) acabara de ser escolhida para fazer parte do grupo das cem donzelas que seria entregue, nesse ano, pelo rei Mauregato ao emir de Córdova! Com as mãos enrugadas apertando as fontes, o velho fidalgo chorava como uma criança.

A revolta subia aos seus lábios. Amarga como fel.
— Minha filha! A minha querida filha! Mas isto é uma infâmia sem nome!... É um verdadeiro ultraje à minha honra, que Deus há-de por certo castigar!
Chorando também, mas em silêncio, a donzela tentou acalmar o fidalgo.
— Senhor meu pai... por favor… não vos exalteis assim...
Ele abanava a cabeça, num desespero louco
— Ah, se eu fosse mais novo!... Se as mãos não me tremessem... e fossem fortes como dantes!...A jovem, temendo pela vida do pai, esforçava-se por sossegá-lo.
— De que vos serviria lutar? Seríeis um contra mil! Nada é possível, meu pai! Que Deus se compadeça de nós e nos dê resignação, é tudo quanto peço...
O velho gritou
— Resignação? Como?... Ah! E eu que imaginei que te poupariam! Tive a louca ilusão de que o meu nome, o meu prestígio... enfim, tudo quanto fiz e do qual ainda resta fama... tudo isso os movesse a pouparem-te!...
D. Mécia suspirou longamente. A sua voz era fraca, dorida:
— E pouparam, meu pai! Durante anos deixaram-me em paz... e foram levando as outras!... Infelizmente… chegou agora também a minha vez!
O fidalgo teve novo acesso:
— Não! Não permitirei! Primeiramente, terão de passar por cima do meu cadáver! (6)
A jovem assustou-se. Juntou as mãos, suplicante.
— Senhor meu pai... peço-vos!... Não tenteis coisas desesperadas... Nada lucrareis com isso e somente aumentareis o meu sofrimento!
— Que hei-de então fazer? Cruzar os braços e deixar-te partir?
— Senhor... Teremos de nos conformar... e aguardar um prodígio... um milagre... que venha livrar-nos de tamanha aflição!
O velho deixou-se cair numa cadeira, exausto.
— Prodígios... Milagres... Mal vai o tempo para tudo isso! Pois não vês?... Quem salvou as outras donzelas?... Quem as livrou das ganas tiranas desse malvado rei Mauregato?
Um suspiro fundo, foi a pronta resposta. Depois, numa voz mais debil ainda, a jovem murmurou:
— Que se cumpra a vontade de Deus!
De repente, o ruído alarmante produzido pela escolta que chegava junto da casa de D. Ramiro despertou os seus moradores. D. Mécia sobressaltou-se. Fez-se terrivelmente pálida, mas olhou o pai com energia.
— Senhor! Por tudo vos peço... Tende calma! Só assim podereis ajudar-me...
Mas já o chefe da escolta entrava sem cerimónia, apresentando-se com altivez no gesto e na voz:
— Está pronta a vossa filha, senhor D. Ramiro? As outras noventa e nove já a esperam para seguir a caminho de Córdova.
A raiva enchia o peito do nobre velho.
— Quem sois vós, para falardes dessa maneira e dentro da minha casa?
O homem sorriu, desdenhoso.
— Bem vedes quem sou! Estais em frente do chefe da escolta (7) que acompanhará até Córdova as cem jovens virgens deste ano! ... Venho aqui buscar apenas vossa filha e mais cinco donzelas, as únicas que faltam para completar a conta.
O fidalgo bramiu com desespero:
— Infame! Pois atreveis-vos a falar desse modo?...
Receando um pior desfecho, D. Mécia apressou-se a comparecer.
— Senhor meu pai... estou pronta a partir! Adeus... e que Deus nos ajude!
O velho não pôde mais. Agarrou a filha, estreitando-a nos braços, outrora fortes e famosos, deixou que o pranto corresse livremente. O chefe da escolta começou a impacientar-se.
— Basta de lágrimas! Está tudo à vossa espera e temos de partir imediatamente! A caminho, pois!

E lá abalaram, numa correria louca pela estrada fora, em direcção à fronteira.
Conta a lenda que, perto de Viseu, talvez por cansaço ou por efeitos do calor, os homens da escolta que acompanhava estas seis donzelas (8) para se juntarem ao resto do grupo, pararam precisamente no local onde hoje existe a freguesia de Figueiredo das Donas, aí a uns três quilómetros da margem esquerda do rio Vouga.
A jovem D. Mécia olhou as suas companheiras. Pareciam conformadas com a sua sorte. Ela, porém, sentia dentro de si algo que lhe dava alento e energia: uma esperança!... Esperança num milagre!Caminhando devagar, com gestos discretos, D. Mécia foi sentar-se num recanto solitário da estrada, olhando com melancolia a linha do horizonte, que se perdia para além da serra de Carvalhais...(9) E, de súbito, aos seus ouvidos chegou, vindo de longe, o tropel dum cavalo batendo a estrada. Quem seria o cavaleiro? — pensou... — Decerto qualquer dos componentes da amaldiçoada escolta.

O galope aproximou-se mais e mais. E, com espanto, a jovem descobriu que se tratava, afinal, dum cavaleiro cristão. Ao vê-la, ele estacou, surpreendido.
— Que fazeis aí, senhora, tão sozinha e triste?
A resposta chegou breve:
— E vós… que fazeis em local tão perigoso?
O cavaleiro sorriu.
— Perigoso porquê? Será que o perigo vem dos vossos olhos?
A jovem suspirou.
— Senhor... não brinco! Pelas vossas armas vejo que sois cristão... Eu também sou cristã e por isso vos previno: afastai-vos... Afastai-vos o mais depressa que puderdes!
— Só me afastarei se o ordenardes. De contrário, quedar-me-ei para sempre... preso aos vossos encantos!
A jovem olhou em volta.
— Senhor cavaleiro!... Já que sois teimoso, escutai. Eu sou uma das cem donzelas que marcham a caminho de Córdova para pagar o tributo anual ao rei Mauregato. Faço parte de um grupo de seis, e vamos ao encontro das restantes, que já esperam por nós... Compreendeis agora? Toda a escolta é da Moirama... Se eles vos encontram aqui, estais perdido!

Ouviu-se uma exclamação de surpresa:
— Que dizeis vós, senhora, que mal posso acreditar? Cem donzelas de tributo? E sois vós uma delas?
— Sim!
— Pois vos juro, à la fé em Deus, (10) que não o consentirei!
Novo suspiro de D Mecia. O seu olhar ficara ainda mais triste…
— Quem sois vós, cavaleiro… e que pretendeis contra tantos inimigos?
— Quem sou? Eis o meu nome, senhora: Goesto Ansures,(11) aquele que vos há-de desposar, se a tal vosso coração não se opuser!
— Mas… senhor…
— Dizei-me apenas: onde estão eles?
— Ali… naquela clareira…
— Esperai então, senhora…
Ela levantou-se, suplicante.
— Por Deus… e por mim… poupai a vossa vida!
O cavaleiro esporeou a montada, dizendo apenas, num assomo de fé e confiança em si próprio:
— Em breve voltarei! Ficai aqui.
E, num arrojo inacreditável, o bravo Goesto Ansures correu para os mouros da escolta gritando altivamente:
— Eh lá! Quais de vós se atrevem a bater-se contra a minha espada? Desafio-vos a todos!... A todos, um por um… ou ao mesmo tempo… como quiserdes!
Houve risadas de troça e um deles gritou:
— Estais a ouvir, companheiros? É assim que falam os cães cristãos! Vamos a ele e cortemo-lo às fatias!
— Pois vinde! A minha espada espera-vos!
E, segundo conta a lenda, Goesto Ansures fez prodigios de milagre. A todos ia derrubando com a sua espada, mal dele se aproximavam. O pânico começou a entrar nos soldados da Moirama. O cavaleiro cristão estava já rodeado de cadáveres, quando lhe surgiu pela frente um dos últimos adversários: o chefe da escolta.
Um golpe rápido partiu-lhe a espada em duas. O cavaleiro ficou desarmado. O mouro riu, selvaticamente, gritando:
—E agora… rendes-te? A tua espada já deixou de semear a morte! É a minha vez!
— Render-me? Nunca! Ouviste bem? Nunca! Se já não tenho espada, qualquer coisa me irá servir para te vencer.
E, num ápice, mais rápido do que a própria palavra, Goesto Ansures arrancou um tronco de figueira e com ele fez frente ao último inimigo, bradando:
— Vamos! Só faltas tu!
— Enganas-te! Vou dar-te o golpe final!
E o Mouro avançou para o cavaleiro cristão. Mas este, mais dextro, atirou-lhe um golpe certeiro, que o prostrou para todo o sempre!
As donzelas presenciavam, atónitas, tão estranha como desigual luta. Um tanto cansado, o cavaleiro vencedor falou-lhes com galhardia:
— Estais livres, agora! Podeis voltar para vossas casas!
E olhando intencionalmente D. Mécia, que vinha já ao seu encontro:
—Todas estão livres... Todas… menos uma… que me prendeu o coração! Com essa irei casar!

Assim aconteceu, na verdade. D. Ramiro, louco de alegria, deu a filha D. Mécia como prémio ao triunfador de tão espantosa batalha. Goesto Ansures, para perpetuar o seu extraordinário feito, concluído com um simples tronco de figueira, acedeu tomar o nome de Figueiredo das Donas,(12) em homenagem à árvore que o salvara. E ali, naquela terra — que ficaria a chamar-se para sempre, também, Figueiredo das Donas — se construiu um belo e sumptuoso paço, do qual hoje só existem lendárias ruínas...(13)

Fonte Biblio MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 79-83


Notas e Comentários
(1) - Mauregato - Sabemos, de conformidade com a crónica escrita por Sebastião de Salamanca, que existiu nas Astúrias um Rei Mauregato, filho bastardo de Afonso I «O Católico» e de uma escrava moura, o qual sucedeu a Silo e governou a partir do ano 783.
Este Mauregato roubou o trono a seu sobrinho, o filho do Rei Fruela. Aliás, o próprio cronista Sebastião de Salamanca resume a sua história assim: «Morto o Rei Silo, das Astúrias, a Rainha Adozinda, de acordo com os seus conselheiros, elevou ao trono Afonso, o jovem filho de seu irmão, o Rei Fruela. Porém, Mauregato, tio do novo soberano, arrebatou-lhe o trono, de surpresa e com violência, obrigando o mesmo a refugiar-se no País de Alava.
Assim governou Mauregato as Astúrias, indevidamente, durante seis anos. Morreu de morte natural e foi sepultado na Igreja de São João Apóstolo, em Pavia»
A respeito de tal Rei Mauregato contam-se muitas lendas e entre elas a do tributo de cem donzelas cristãs, pago ao emir de Córdova, como preito de vassalagem.

(2) - Emir de Córdova - Segundo cronista do tempo, o emir de Córdova, ao qual o rei Mauregato prestava a sua singular e estranha vassalagem, era Abd-el-Rhaman. Mas pergunto eu: não terá sido este Abd-el-Rhaman o próprio Abderrahman, cognominado «O Justo» que governou desde Abril de 756 e fixou a sua residência precisamente em Córdova?

(3) - Tributo das Donzelas - Tenho ouvido as mais variadas versões a este respeito. Uns falam num tributo de cem donzelas. Outras, em duzentas. E ainda algumas apenas em cinquenta. Inclino-me porém para a mais vulgar de todas: o tributo anual de cem donzelas cristãs, tal como reza a história biográfica do protagonista desta história lendária, sendo cinquenta nobres e cinquenta plebeias, escolhidas sempre entre as mais belas.

(4) - D. Ramiro - É assim designado o pai de uma das donzelas, tanto em algumas versões populares como também no 2º. volume da «Enciclopédia Luso-Brasileira» ao tratar de Goesto Ansures.

(5) - Dona Mécia - Enquano umas versões chamam Mécia à jovem e bela filha de D.Ramiro, pela qual se enamorou apaixonadamente o bravo cavaleiro Goesto Ansures, outros designam-na como Orélia (ver, por exemplo, «Terras de Portugal», de António Montez, e «Terras Fradescas», de Armando Ribeiro).

(6) - Por cima do cadáver - É uma frase feita muito utilizada nas narrativas de antanho. Devia querer significar principalmente o seguinte: por cima do cadáver de um Cristão somente os Mouros se atreviam a passar, pois os outros Cristãos ficariam temendo os castigos do inferno. Tal superstição (o medo de passar por cima de um cadáver) continua a imperar ainda em muitas terras da província.

(7) - O Chefe da escolta - Em certas versões desta história, que me foram contadas, o chefe da escolta que vinha buscar as cem donzelas para o Emir de Córdoba era uma espécie de auxiliar do próprio emir, ficando com o que o outro regeitava ou aborrecia. Daí o interesse que nestas versões toma a figura anónima e lúbrica do chefe da escolta.

(8) - As seis donzelas - Embora muitas descrições escritas da Lenda de Figueiredo das Donas se refiram à caravana das cem donzelas, que o cavaleiro Goesto Ansures conseguiu salvar e libertar - a verdade é que me inclino para a própria versão pessoal do protagonista na sua tão discutida «Canção do Figueiral». Eis como começa a aludida canção:
No figueiral figueiredo
Ai no figueiral entrei.
Seis niñas encontrava,
Seis niñas encontrei!


Na linguagem da época, Goesto Ansures confessa que encontrou seis donzelas.
Como reforço há ainda a acrescentar que o escudo dos Figueiredos, (os quais, segundo os linhagistas, procedem todos de Goesto Ansures) é constituído por cinco folhas de figueira, tendo mais uma folha no remate do elmo. Regista-se que a tradição popular garante ter sido o próprio Goesto Ansures quem mandou pintar este escudo comemorativo e simbólico, depois do seu extraordinário feito, perpetuando assim a recordação das seis donzelas que ele salvara.

(9) - Serra de Carvalhais - António Montez, no seu 3º. volume das suas «Terras de Portugal», chama-lhe «Cumiada de Carvalhais». Deve referir-se à freguesia situada nas abas da Serra da Arada, a cerca de cinco quilómetros da margem direita do Rio Vouga, precisamenteno cenário da história que acabo de contar.

(10) - À la Fé em Deus - Expressão usual nos cavaleiros antigos e que muitas histórias populares ainda guardam respeitosamente.

(11) - Goesto Ansures - Embora já tenha encontrado o nome do arrojado cavaleiro escrito como Guesto Ansures prefiro esta forma original, e conforme à epoca em que ele viveu. A sua figura está envolvida pela Lenda. Diz-se, porém, que foi o fundador da família dos Figueiredos.

(12) - Figueiredo das Donas - Freguesia do Concelho de Vouzela, comarca de S.Pedro do Sul e distrito de Viseu. Tem por orago a Nossa Senhora das Neves, de cuja imagem também se conta uma lenda muito curiosa. Na freguesia existem ainda vstígios de remotas construções romanas.

(13) Nota final - A esta lenda, como já disse, está ligada intrinsecamente a curiosíssima e celebrada «Canção do Figueiral», que se diz ter sido composta pelo próprio Goesto Ansures e que faz parte do chamado grupo das relíquias da poesia portuguesa, tal como a «Canção de Gonçalo Hermingues», a que me referi na Lenda da Princesa Fátima, já publicada nesta colectânea, o «Poema da Cova ou da Destruição de Espanha» e as «Duas Cartas de Egas Moniz Coelho a sua Violante». «A Canção do Figueiral» (ou do Figueiredo, pois são palavras sinónimas), denominada também «Trovas do Figueiredos» ou «Romance de Goesto Ansures» foi revelada por Frei Bernardo de Brito, na sua monumental «Monarquia Lusitana», dizendo que a letra num cancioneiro de mão e que a escutara a velhos campónios da Beira Alta.

Serviu depois de inspiração a muitos poetas nacionais e estrangeiros e foi traduzida em língua alemã por Bellerman e Storch. Muito mais tarde, porém, a escritora e investigadora Carolina Michaelis pôs em duvida a autenticidade do poema, sugerindo que fora o próprio Frei Bernardo de Brito o forjador da «Canção do Figueiral». De qualquer modo, ficou a pertencer ao nosso Cancioneiro Popular. Mas o Mistério continua. E o Mistério é irmão gémeo da Lenda..

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