A LENDA DO CEGOVIM
Texto: Português
Fontes: Lendas de Portugal - Gentil Marques; Portugal Glorioso
Lenda do Cegovim
Ora aconteceu assim mesmo.
Tal e qual como reza a História. Tal e qual como conta o povo.
Nos seus primeiros tempos de casada com El-Rei D. Dinis, a jovem e formosa Rainha Dona Isabel — à qual chamaram, mais tarde, e com toda a razão, «Rainha entre as Santas e Santa entre as rainhas» — foi viver com a Corte para Leiria.
E ali, nesse cenário de sonho o tempo ia passando entre folguedos e jogos poéticos...
Dona Isabel era então ainda muito nova, mas já revelava o seu extraordinário amor pelos pobres e pelos humildes, levando àqueles que sofriam a consolação duma palavra ou dum gesto. Em vez de ficar reclinada, como o rei, aspirando voluptuosamente o perfume das flores — ela empregava o tempo visitando os que mais necessitavam do seu auxílio. E foi no caminho duma dessas visitas de misericórdia que certa manhã encontrou nas voltas dum atalho um pobre mendigo leproso, sujo e repelente.
Mal a viu, o homem afastou-se instintivamente. Mas pediu, com voz trémula:
— Senhora, atirai-me uma esmola... porque eu morro de fome e de cansaço...
Ia só, a Rainha. Contudo, nem por um instante sequer hesitou em parar. E parou, e perguntou, com infinita ternura:
— Donde vindes, pobre homem? Pareceis-me bem doente... Aproximai-vos...
Todavia ele não se aproximou. Antes, pelo contrário, recuou. Mais e mais.
— Não, senhora, não... Isso não!... Não sei quem sois… mas não me toqueis!... Bem vedes... A minha doença é praga maldita que não perdoa a ninguém.
Dona Isabel suspirou. A miséria humana atormentava-a tanto, tanto... Ah, se ela pudesse!...
Fez um gesto tímido.
— Parai, pobre velho... Fugis, para quê?
A voz dele chegou-lhe como que num murmúrio de confissão:
— Para não vos pegar o meu mal, senhora... Já vi que sois boa!
E o mendigo, fazendo alarde das suas últimas forças, procurava afastar-se o mais rapidamente possível... Porém as pernas fraquejaram e ele caiu de borco no chão poeirento. Sem hesitar, Dona Isabel correu para junto do desgraçado velho.
— Estais ferido?
Por momentos, não respondeu. Depois, a resposta veio, ofegante e excitada:
— Oh, senhora, por quem sois, rogo que vos afasteis!... Sinto-me morrer aos poucos... mas fugi, fugi de mim!... Eu sou maldito!
Dona Isabel sorriu. Um sorriso feito de graça e de suavidade.
— Não sejais tonto, pobre homem... Vinde comigo!
E, perante o olhar estupefacto do velho mendigo, a Rainha ajuntou, numa voz meiga mas sem réplica:
— Amparai-vos ao meu braço!
Apenas um gemido saiu dos lábios trémulos do velhusco.
— Senhora...
Mas já ela, segurando-o e amparando-o, lhe dizia, sempre a sorrir:
— Podeis fazer força... O meu braço também é forte...
E assim andaram algum tempo. Estranho par, na verdade! Pelo atalho cheio de pedras e de poeira, um velho mendigo leproso arrastando-se encostado ao braço duma rainha!
Enquanto andavam, Dona Isabel sentia que a vida dele se estava a extinguir, pouco a pouco... Sim, o mal do pobre homem, além da lepra que o devorava implacavelmente, devia ser fome... Uma fome terrível, decerto... E era preciso salvá-lo!
De súbito, parou. Olhou em redor. Sentiu-se aturdida, desorientada. E sem que o velho a pudesse escutar, rezou mentalmente:
— Oh, meu Deus!... Ajudai-me, meu Deus! Não vejo o que possa dar a este pobre homem... A não ser... A não ser estas pequenas amoras que estão aqui perto de mim... Mas as amoras não matam a fome...
Fez uma pausa. Os seus olhos prenderam-se mais às amoras. Teve um sopro íntimo de inspiração.
— Quem sabe? O poder de Deus é grande, é infinito!... Quem sabe se Ele não pôs as amoras no meu caminho… apenas para me experimentar?
E sem mais hesitação colheu uma mão-cheia de amoras e deu-as ao velho mendigo.
— Tomai... Tomai nas vossas mãos... Comei estas amoras!
Espantado, indeciso, arfando de cansaço e de emoção por tudo o que lhe acontecia tão inesperadamente, ele ainda perguntou:
— Achais que eu possa comer… estas amoras... senhora?... No meu estado?...
Prontamente, a Rainha respondeu:
— Podeis, sim!... Podeis e deveis... Confiai na vontade de Deus!
Embora sem grande entusiasmo, o mendigo foi comendo devagar as amoras que a Rainha lhe oferecera... E à medida que as comia, decerto por efeito sobrenatural, ganhava novas energias, sentia-se mais forte.
Os olhos do velho desenrugaram-se e inundaram-se de gratidão.
— Senhora! Senhora! Isto é um milagre!... Quem sois vós, senhora?
E endireitava-se, já sem necessidade de se apoiar ao braço da Rainha. Desaparecera o cansaço por completo. Restava apenas a emoção.
— Senhora, quem sois vós? — insistiu ele.
E ela respondeu simplesmente:
— Sou uma mulher que tem fé.
Depois, olhando-o e sorrindo-lhe, acentuou:
— Se tiverdes fé, também, as vossas feridas hão-de sarar!
A medo, o homem olhou as chagas da lepra e voltou a fitar a extraordinária mulher que encontrara em seu caminho, nessa manhã. Ela agora parecia ainda mais jovem e formosa. E mais excitada.
— Olhai... Ou eu me engano muito... ou as vossas feridas estão a desaparecer... Vede!
E perante o olhar cada vez mais atónito do mendigo, à maneira que as mãos de Dona Isabel iam passando suavemente sobre as feridas, estas desapareciam, fechando-se incompreensivelmente.
Sem saber que pensar, sem saber que fazer, o velhusco voltou a gaguejar.
— Senhora... As vossas mãos… fazem milagres!
Dona Isabel envolveu a resposta num dos seus incomparáveis sorrisos.
— Não são as minhas mãos que fazem milagres, pobre velho... São as amoras que Deus espalhou por estes caminhos!
Segundo a antiga história que o povo conta, tal como muitos outros já tinham ficado seus fiéis vassalos, também o mendigo, curado e maravilhado, se tornou um fervoroso servo daquela que o salvara e que ele veio a descobrir, com pasmo autêntico, ser a sua própria Rainha!
A partir de então, o pobre homem desejava somente poder pagar um dia, de qualquer modo, a sua enorme dívida de gratidão.
E esse dia surgiu.
Andava ele, já altas horas, a terminar um carregamento de lenha, quando viu passar um vulto embuçado, que lhe pareceu de alguém bastante conhecido...
Seguiu-o, discretamente, aproveitando os recantos do campo — que para ele não tinha segredos — e acabou por descobrir que se tratava de El-Rei D. Dinis, numa das suas aventuras de amor.
O homem não perdeu mais tempo. Com a maior rapidez que lhe foi possível, correu ao encontro da Rainha, então instalada em Monte Real, a pouca distância dali. E, conseguindo ser levado imediatamente à sua presença, confessou sem delongas nem hesitações:
— Senhora, minha Rainha, perdoai-me... mas sei que El-Rei vosso esposo vos atraiçoa numa aldeia vizinha!
Dona Isabel fingiu não se perturbar.
— Que dizeis, meu bom amigo? Estais certo disso?
E ele afirmou, olhando-a bem de frente:
— Absolutamente certo! Vi-o, com os meus próprios olhos... Ia embuçado... Eu segui-o até à pequena aldeia para onde El-Rei se dirigia... Mas, ficai sabendo, Senhora, que vosso esposo sai muitas vezes assim, às escuras... Mal distingue o caminho, quando volta!
Dona Isabel pareceu reflectir, durante poucos momentos. Depois, resoluta, inclinou-se para o velho homem.
— Pois bem... Escutai… esta noite, ireis vós e alguns homens mais que escolherdes iluminar o caminho, quando El-Rei voltar... Sou eu que vos ordeno, entendeis?
— As vossas ordens serão cumpridas, Senhora minha Rainha!
Mas antes que ele se afastasse, Dona Isabel ainda ajuntou:
— Quando tudo estiver pronto, avisai-me... Eu também quero estar junto de vós.
E, na verdade, quando El-Rei, nessa madrugada escura, voltava da sua habitual aventura de amor, encontrou-se de súbito diante dum caminho estranhamente iluminado.
O seu primeiro gesto foi de furor.
— Que fazeis aqui, sandeus? Para que servem estes archotes?
Mas logo se aquietou, varado de surpresa. Vindo do meio dos homens dos archotes, avançou para ele a própria Rainha, que lhe respondeu:
— Estas luzes servem para vos iluminar o caminho, Senhor meu Rei... Vindes cego certamente pelo negrume da noite...
D. Dinis compreendeu. Baixou a cabeça. Quando a ergueu de novo, sorria também.
— Tendes razão, Senhora... Cego vim... E por isso vos agradeço terdes tão bela lembrança... Voltemos a Monte Real!
Cortejo singular, esse, a estender-se pelo caminho. À frente El-Rei D. Dinis e a Rainha Dona Isabel. Ambos calados. Ambos pensativos. Ambos iluminados pelos archotes que os homens erguiam nas suas mãos rudes.
De qualquer modo, fosse como fosse, a notícia propagou-se e no dia seguinte não se falava doutra coisa. De tal modo, que D. Dinis resolveu procurar a Rainha nos seus aposentos.
— Senhora... Fala-se demais no caso de ontem à noite...
— E de quem é a culpa, real Senhor?
Ele baixou os olhos.
— Bem sei que é minha... E por ser assim, venho trazer-vos uma novidade que decerto vos agradará...
A Rainha tentou adivinhar-lhe o segredo, pela expressão do rosto, mas não o conseguiu.
— Dizei então...
El-Rei aprumou-se e sentenciou:
— Daqui em diante, vou chamar àquele caminho… o caminho de Cegovim.
— Muito bem, real Senhor.
— Foste vós que me destes a inspiração, Isabel!... De facto, cego vim... até encontrar os vossos archotes... Vós o dissestes... E eu não esqueci.
Foi a vez dela sorrir brandamente, olhando-o com insistência.
— Prouvera a Deus que não mais vos esquecêsseis!
Ele segurou-lhe as mãos, beijando-as com ternura.
— Sim, eu andava cego... Perdoai-me!
— Estais perdoado...
E convidando-o a sentar-se junto dela, numa banqueta de seda, Dona Isabel segredou-lhe:
— Não vos esqueceis, Dinis... Aquele é o caminho de Cegovim... E lá para trás fica a aldeia do Amor!...
Riram ambos. As pazes estavam feitas, mais uma vez. Feliz, tranquilo, jovial, El-Rei acrescentou, rindo ainda:
— Isso mesmo: o caminho de Cegovim... e a aldeia do Amor... Sois a mais inteligente das mulheres… e das esposas!
Não consta que, pelo menos nos tempos mais chegados e naquele mesmo local, D. Dinis voltasse a andar pelos caminhos, de noite às ocultas da Rainha...
Mas os nomes desta história saborosa, que pertence às heranças da alma popular, continuaram e continuarão pelos tempos fora!
Ali, a uns dez quilómetros de Leiria, ainda hoje existe a pequena aldeia de Amor... E lá está a ligá-la a Monte Real o caminho de Cegovim...
E, finalmente, quanto às amoras: em certas regiões do País persiste o costume de julgar que Deus as espalhou para matar a fome e a sede e para curar as doenças… E ainda hoje corre de boca em boca uma quadra de genuíno sabor popular, que se diz ter sido feita pelo próprio velho mendigo da Rainha Santa.
As amoras que comi
Tinham um estranho sabor
Fosse delas ou de ti,
Nasceu em mim o amor...
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