quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

FERNÃO LOPES - COM SENTIMENTO E VERDADE ESCREVEU A HISTÓRIA

Personagens Históricos
FERNÃO LOPES - COM SENTIMENTO E VERDADE ESCREVEU A HISTÓRIA
Graças ao que deixou escrito, é um personagem histórico de grande importância para compreendermos como era o nosso País na sua época, séc. XV e os princípais acontecimentos históricos a que assistiu. Através das suas crónicas percebemos como era a vida na Corte e fora dela, assim como a história do nosso País, graças aos trabalhos escritos que lhe eram encomendados pelos Reis a quem serviu.  Foi "Escrivão dos livros d'el Rei" e "Guarda-mor da Torre do Tombo", o que nos faz compreender que era um homem dotado de grande habilidade e cultura. De facto, a sua forma de escrever é impressionante, pois a sinceridade dos sentimentos que põe na sua escrita, permite-nos viajar aos locais e época que descreve,como se estivessemos a assistir aos acontecimentos por ele descritos nas suas crónicas.
Pois bem, aqui fica revelada a sua vida e obra, deste que foi um dos maiores cronistas e escritores da nossa história.

Texto: Português
Áudio: Português
Fontes: Wikipédia - Vidas lusófonas - YouTube


Fernão Lopes








Fernão Lopes
Nascimento Entre 1380 e 1390
Lisboa,
Morte ca. 1460 (80 anos)
Lisboa
Nacionalidade Portugal Português
Ocupação Guarda-mor da Torre do Tombo
Fernão Lopes (Lisboa, entre 1380 e 1390 − Lisboa, cerca de 1460) foi guarda-mor da Torre do Tombo, tabelião geral do reino e cronista de todo o reino de Portugal, e até antes de Portugal ser reino, no entanto, desde o tempo do borgonhês Conde D. Henrique até Pedro I de Portugal, as suas Crónicas levaram sumiço (ou desapareceram, no tempo do rei D. Afonso V), restando apenas o que ficou: de D. Pedro I de Portugal a D. João I de Portugal.1 2

Biografia

A respeito da vida de Fernão Lopes carecem os dados biográficos conclusivos.3
A hipótese é de que o cronista-historiador teria nascido na cidade de Lisboa entre os anos de 1380 e 1390, e frequentado o Estudo Geral, apesar de uma provável origem familiar mesteiral.
O registro mais antigo sobre sua vida é um documento datado de 1418 que informa ser Fernão Lopes guarda-mor da Torre do Tombo, cargo de alta confiança em que era encarregado de guardar e conservar os arquivos do Estado.
Registra-se também que ele ocupou a função de “escrivão dos livros” de D. João passando, em 1419, a escrivão de D. João I. Neste momento teria começado a escrever a Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal.
Em 1422 ocupa a função de escrivão de puridade do Infante D. Fernando.
Algum tempo depois, em 1434, sob o reinado (1433-1438) de D. João inicia, “sob a incumbência oficial de colocar os feitos dos reis portugueses na forma de crônica”4 , a escrita da Crônica de D. Joao I. Seria substituído como cronista no ano de 1451, por Gomes Eanes de Zurara.
Deixa de ser, em 1454, guarda-mor da Torre do Tombo, em virtude da avançada idade. A última informação dá conta de que Fernão Lopes ainda vivia em 1459, sendo incerta a data de sua morte.5 Segundo informações no prefácio da Chronica de El-Rei D. Pedro I, escrito por Luciano Cordeiro, após deixar a função de guarda-mor, Fernão Lopes teria ainda vivido por mais 5 anos, falecendo próximo aos 80 anos de idade.6
Fernão Lopes forma-se num contexto próximo a acontecimentos que se faziam recentes na memória dos portugueses, a saber, os mais significativos: Crise de 1383-1385 e a Batalha de Aljubarrota (1385). O primeiro acontecimento foi um golpe sucessório “auxiliado pela população camponesa, comerciantes, alguns membros da nobreza e ordens religiosas, principalmente franciscanos”7 , que assegurou a ascensão do Mestre de Avis, D. João I, ao trono português. D. João I sairia fortalecido como rei de Portugal com o reconhecimento da legitimidade da dinastia avisina através da assinatura do Tratado de Windsor (1386), entre Portugal e Inglaterra e do seu casamento com D. Filipa de Lencastre.
Ao rei eleito e popular, D. João I, sucedeu um rei mais aliado a aristocracia, D. João. Cresceu o poder feudal dos filhos de D. João I, e com ele o predomínio da nobreza, que saíra gravemente abalada da crise da independência. Assistiu-se à guerra civil subsequente à morte de D. João, à insurreição de Lisboa contra a rainha viúva D. Leonor, e à eleição do infante D. Pedro por esta cidade, e em seguida pelas cortes, para o cargo de Defensor e Regedor do Reino, em circunstâncias muito parecidas com as que tinham levado o Mestre de Avis ao mesmo cargo e seguidamente ao trono em 1383-1385.
Sendo assim, Fernão Lopes entrara, certamente, em contato com testemunhos dos acontecimentos, sendo estes eventos relatados em sua obra de 1443, Crônica de D. João I. Pode, dessa forma, consultar os protagonistas envolvidos na resistência contra Castela e na paz firmada no ano de 1411 com o mesmo reino, através do Tratado de Ayllón, ratificado em 1423.

Fernão Lopes no "Painel do Arcebispo", pertencente aos "Painéis de São Vicente de Fora", atribuídos a Nuno Gonçalves (séc. XV).
 
Diante desta conjuntura política e social conturbada Fernão Lopes foi designado, por D. João, a croniciar as façanhas da dinastia de Avis. No entanto, mesmo designado oficialmente para compor uma história portuguesa, sua historiografia não é regiocêntrica. O autor, mesmo que utilize o rei como centro da história, demonstra em sua narrativa grande interesse pelo povo e pelas influências destes nas conformações sociais de Portugal. Das crónicas que Fernão Lopes escreveu, restam-nos apenas três:

Cronista-historiador

Fernão Lopes é considerado um cronista-historiador. Ele redimensiona o gênero cronístico ao limitar as narrativas tradicionais panegíricas11 , abrindo espaço de autonomia da narrativa histórica através de uma metodologia em que pudesse chegar a uma “verdade nua”. Nessa metodologia Fernão Lopes ordena as “estórias” cronologicamente, buscando uma hierarquia explicativa para os acontecimentos. Enquanto cronista assumia uma posição de autoridade, de distanciamento e isenção, atributos capazes de detectar e controlar os subjetivismos dos discursos (mundanal afeiçom) e, assim, chegar à “verdade nua”.

O estilo e a metodologia

Do ponto de vista da forma, o seu estilo representa uma literatura de expressão oral e de raiz popular. Ele próprio diz que nas suas páginas não se encontra a formosura das palavras, mas a nudez da verdade. Era um autodidacta. Foi um dos legítimos representantes do saber popular, mas já no seu tempo um novo tipo de saber começava a surgir: de cunho erudito-acadêmico, humanista, classicizante.
Para uma metodologia da escrita da história comprometida com a “verdade nua” a partir da Crônica de D. João I: a mundanall afeiçom, ordenação das “estórias”, autoridade e concepção temporal

Mundanall afeiçom

Fernão Lopes entende que a afeição é inerente à condição humana, que escapa ao controle racional. Assim, considera que as paixões e certas influências modificam a narrativa, o que implicaria em uma dificuldade de se apreender a verdade. Daí, a necessidade de o cronista-historiador em controlar a mundanall afeiçom, a fim de garantir o espaço de autonomia do discurso histórico, separando os desejos e interesses. Desta forma, compreende que os atributos do cronista devem ser a isenção e a autoridade.

As variações da mundanall afeiçom: a artificial e a natural

Mesmo inferindo que a mundanall afeiçom afeta a todos os homens, Fernão Lopes entende que esta muda de acordo com os grupos sociais em diferentes níveis de subjetividade. Assim, analisa a mundanall afeiçom em dois grupos: os da ordem senhorial, mais próximos ao rei; e os mais distantes da ordem senhorial e do rei. No primeiro grupo, ela se caracterizaria pelos valores tradicionais presos ao servilismo ao rei e ao modelo panegírico, conferindo uma parcialidade e um artificialismo que poderia trazer um falseamento da realidade. Já, os indivíduos do segundo grupo (os mais afastados do rei), seriam os portadores da “nua verdade”, pois a mundanall afeiçom destes, corresponderia aos laços de afeição e paixões naturais do homem, portanto, desligada do artificialismo e cerimônias do servilismo. Contudo, Fernão Lopes compreende que o discurso precisaria de um tratamento adequado à verdade textual conferida pelo cronista devido sua posição de autoridade, distanciamento e isenção. Assim, podemos dizer que Fernão Lopes enquanto cronista tinha uma preocupação de uma construção textual comprometida com a “verdade nua”. Para isso, estabeleceu uma metodologia para a escrita da história em que controlava a subjetividade da mundanall afeiçom – através de sua autoridade, distanciamento e isenção – cerceando a retórica tradicional formulada no modelo encomiástico (discursos de enaltecimento do monarca) para então ordenar as “estórias” conservando o espaço de autonomia do discurso histórico. Desta forma, Fernão Lopes, não só ordenava as “estórias” cronologicamente, mas também produzia uma hierarquia explicativa para os acontecimentos.
Podemos entender que Fernão Lopes buscava certo equilíbrio entre o discurso propriamente histórico e o discurso panegírico (escrita elogiosa). Assim, mesmo quando o cronista precisava se utilizar do discurso panegírico, ele o fazia apenas para cumprir uma necessidade formal (decoro), mas optando por um panegírico fraco e breve para não comprometer seu compromisso em mostrar a “verdade nua”. Através disso, podemos compreender que a concepção de tempo para o cronista se dá de forma bipartida, à medida que ele faz a distinção da forma panegírica e do discurso propriamente histórico, abrindo um espaço de autonomia para a narrativa histórica, que possibilite a produção de uma “verdade nua”.


Fernão Lopes (soldado)

Fernão Lopes (? - 1545) foi o primeiro habitante permanente conhecido da ilha de Santa Helena no Atlântico sul. Foi soldado de Portugal na India, tendo sido torturado e desfigurado em castigo por ficar do lado de Roçalcão (Rasul Khan) em uma rebelião contra o império português em Goa. Em seu caminho de volta a Portugal depois destes acontecimentos, optou voluntariamente pelo exílio na ilha, tendo vivido em solidão quase completa durante mais de 30 anos.

A serviço de Portugal

Em 1503 Fernão Lopes, soldado e membro da baixa nobreza, acompanhou o general naval português Afonso de Albuquerque em sua primeira viagem para Goa, na costa ocidental de Índia. Logo após sua chegada, Afonso de Albuquerque voltou a Portugal para obter reforços, deixando para trás Lopes a cargo de uma guarnição, com ordens de manter a paz e governar a população local. Quando Afonso de Albuquerque retornou dois anos depois, verificou que a guarnição não se encontrava mais em posse de Portugal. Alguns dos homens haviam se casado com mulheres locais, e alguns, incluindo possivelmente o próprio Fernão Lopes, tinham se convertido ao Islã. As tropas de Fernão Lopes também apoiaram a resistência muçulmana contra ocupação portuguesa.
Os homens de Afonso de Albuquerque recuperaram a posse do território e Fernão Lopes e os outros desertores foram entregues aos portugueses com a condição de que suas vidas fossem poupadas. Foram, entretanto torturados de forma tão cruel que a metade deles morreu em menos de três dias. Fernão Lopes, como líder do grupo, recebeu o castigo mais severo. Foi amarrado com cordas em dois postes de madeira, e os homens de Afonso de Albuquerque cortaram seu nariz, orelhas, braço direito, e o polegar da mão esquerda (e, segundo alguns, também o indicador e o dedo médio). Seu cabelo e barba foram raspados com conchas de molusco. Os sobreviventes foram então libertados, e fugiram para a selva onde eles poderiam esconder suas deformidades e ser deixados sós.
Fernão Lopes ficou na Índia até a morte de Afonso de Albuquerque em 1515, quando zarpou clandestinamente para Portugal. O navio parou em Santa Helena para reabastecer. Esta ilha havia sido descoberta pelo português João da Nova no dia 21 de maio de1502 , e graças a sua abundância de água fresca e víveres, tornou-se escala regular para as embarcações portuguesas transitando entre as Índias e a Europa via Cabo da Boa Esperança. Pouco disposto a enfrentar a vida em Portugal, Fernão Lopes pediu para ser deixado na ilha. Ele foi deixado em companhia de três ou quatro escravos africanos cujo destino não foi registrado pela história. Com eles foram deixados alguns suprimentos do navio: biscoitos, carne e pescado secos, um isqueiro e uma caçarola.

Abandonado em Santa Helena

Quase um ano passou antes de outro navio ancorasse em Santa Helena. Fernão Lopes se aclimatou em seu novo lar, uma ilha vulcânica de 122 km² a quase 2000 km de distância da costa da África. Seu clima é tropical e agradável, temperado por ventos alísios. Naquela época, o ecossistema original de Santa Helena estava quase intacto, e cabras introduzidas pelos portugueses prosperavam no ambiente intocado da ilha (nenhum mamífero ou réptil habitava Santa Helena antes de sua introdução pelos exploradores). O interior de Santa Helena era uma floresta densa e antiga constituída principalmente por ávores do gênero Commidendrum e outras plantas que haviam colonizado a ilha há até 10 milhões de anos.

A ilha de Santa Helena no Oceano Atlântico Sul.
 
Segue um relato contemporâneo do primeiro navio a encontrar Fernão Lopes depois que ele foi deixado em Santa Helena, transcrito de uma artigo publicado pela Sociedade de Hakluyt:
A tripulação ficou surpresa ao ver a gruta e a cama de palha nas quais ele dormia... e ao verem a roupa que concordaram que esta deveria ser de um português. Então fizeram aguada e não mexeram em nada, e deixaram biscoitos, queijos e outros víveres, além de uma carta exortando-o a não se esconder da próxima vez, pois ninguém o prejudicaria.
Então o navio partiu, e ao enfunar as velas um frango caiu ao mar e as ondas o levaram para a costa. Fernão Lopes o recolheu e alimentou com um pouco do arroz que eles tinham deixado para ele.

O frango que Fernão Lopes salvou ficou sendo seu grande amigo em São Helena. Com o tempo, Fernão Lopes começou a ter cada vez menos medo das pessoas. Quando um navio ancorava na Aguada Nova, como era conhecida a enseada onde se encontra atualmente o porto de Jamestown, Fernão Lopes cumprimentava os marinheiros, e conversava com eles quando vinham à praia. Em função de suas deformidades, passou a ser tratado como santo, e a ser visto como uma incorporação do sofrimento humano. Os viajantes que aportavam na ilha costumavam deixar muitos presentes, e se beneficiavam também dos produtos que ele cultivava.

Fernão Lopes visita Portugal e Roma

Depois de 10 anos na ilha, Fernão Lopes concordou em retornar a Portugal para rever sua família, visitou o Rei João III e então viajou para Roma onde o Papa Clemente VII lhe concedeu uma audiência e o perdoou do pecado de apostasia. O Papa ficou muito impressionado com ele, e decidiu facultar-lhe a realização de um desejo, ao que Fernão Lopes expressou sua vontade de retornar a sua casa na Ilha de Santa Helena. O Papa mandou Fernão Lopes de volta a Portugal com uma carta para João III, solicitando o envio de Fernão Lopes a Santa Helena, onde ele viria a falecer em 1545, após mais 20 anos de solidão quase completa.



ACERCA DE FERNÃO LOPES
Cronista, 1380 ? - 1460?

Retrato de Fernão Lopes; pormenor do Políptico das Janelas Verdes (Nuno Gonçalves) que se supõe representar o cronista.
O BEM DO POVO É QUE JUSTIFICA QUE HAJA GOVERNANTES E NÃO O CONTRÁRIO...
QUANDO TUDO ACONTECEU

C. de 1380: Em Lisboa, numa família de camponeses ou de mesteirais, nasce Fernão Lopes. Terá frequentado a Escola Catedral de Lisboa. 1418: Regista-se o mais antigo documento existente sobre o cronista, revelando a sua condição de Guarda-Mor da Torre do Tombo. Assinala-se também a sua posição como escrivão de D. João I e do infante D. Duarte. 1419: Por ordem do infante D. Duarte, começa a redigir a Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal; escreve depois as crónicas de D. Pedro e D. Fernando, bem como as duas primeiras partes da crónica de D. João I. 1422: Exerce a função de escrivão da puridade do infante D. Fernando. 1434: D. Duarte, acabado de subir ao trono, concede ao cronista uma tença de 14 000 réis anuais e carta de nobreza, como reconhecimento pelos seus méritos. Passa a usar o título de «vassalo de el-rei». 1437: Na fracassada expedição a Tânger, fica também prisioneiro o seu filho, Mestre Martinho, médico de D. Fernando. 1439: O regente D. Pedro confirma a tença concedida por D. Duarte, falecido no ano anterior. c.1443: Seu filho morre no cativeiro. 1449: D. Afonso V aumenta a tença anual para 20 000 réis anuais. 1451-52: A idade avançada obriga-o a afastar-se do seu trabalho na Torre do Tombo vindo em 1454 a ser substituído no cargo de «guardador das escrituras do Tombo» por Gomes Eanes de Zurara. 1459: Regista-se o seu envolvimento num litígio para deserdar um neto, Nuno Martins, filho bastardo do mestre Martinho. Fernão Lopes terá morrido pouco tempo depois, provavelmente em 1460.

TEMPOS DIFÍCEIS


O jovem copiador passeia por Lisboa. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
 São tempos difíceis estes os que vivemos nesta era de 1456. Nas taracenas da Ribeira das Naus, carpinteiros, calafates, petintais e remolares aparelham navios. Navios que tantas vezes servem de esquife aos que se aventuram oceano adentro. Diz-se agora que el-rei vai enviar uma armada para castigar o turco que ameaça a cristandade e outra para derrotar o mouro que nos cerca em Ceuta. Nas ruas de Lisboa são muitas as mulheres e as crianças de negro, viúvas e órfãos dos que nos mares se perdem, tragados pelas ondas ou assaltados pelos corsários. A cidade fede a incenso e ao olor das velas com que padres escanzelados esconjuram a ameaça de peste. Há muita mercadoria à venda, mas ao preço a que nos chega quem a pode comprar? Tempos de fartura para os senhores e de escassez para vilões e pobres. Todos se queixam, desde os mercadores despojados pelos piratas, aos tendeiros e vendedores a quem as mercadorias chegam pela hora da morte. E as sisas e rendas a pagar ao erário levam, dizem eles, o pouco que lhes fica. Queixam-se os pescadores e as regateiras da Ribeira, os cortadores e os esfoladores de carne, as ensaboadeiras de roupa, os mestres de calçar ruas, os fendedores de lenha, os homens e as moças de soldada. Tempos difíceis, acho eu. Porém, meu avô diz-me que difíceis, difíceis foram os seus tempos, quando ele tinha os dezasseis anos que agora eu tenho. Diz também que, nós os moços, não sabemos o que são dificuldades, que tudo é fácil para nós comparado com as agruras da sua juventude. E pergunta-me (quase sempre que me vê, mas como se fosse a primeira vez). Sabes tu, rapaz, o que é um almogárave? Não sei eu outra coisa, mas ele não me deixa responder: - Fica sabendo, que um almogárave é um homem que entra em correrias na retaguarda das hostes inimigas. Pilha, destrói, mata e desaparece como uma nuvem em céu de Agosto. Eu sou um almogárave (diz «eu sou», não «eu fui», como devia, pois fala de coisas passadas há mais de cinquenta anos, antes de que fizéssemos a primeira paz com Castela.) E acrescenta: mas que sabes tu e teu pai, calígrafos que sois, o que são estas coisas de armas? Tempos difíceis, os de hoje? Não, bofé! E se está na rua, cospe depreciativamente. Porém, quando fala do «seu tempo» o olhar ilumina-se-lhe e a voz cresce de vigor e emoção. Porque, diz ele, apesar de muito mais difíceis, os seus tempos eram mais belos, o céu era mais azul, o sol era mais quente, o odor do mar mais salgado e penetrante, os frutos mais saborosos, as moças mais formosas (ainda que muito mais recatadas)... Tudo era mais difícil, mas tudo era melhor.
Difícil é compreender os anciãos, digo eu.

A DO MESTRE LOPO

Encontro com Fernão Lopes. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

 Nem todos os anciãos, no entanto. Conheço um diferente. Pára ao fim da tarde na locanda do mestre Lopo, na Rua da Porta do Mar, a dois passos da Catedral, onde nos dias de calor vou beber uma água fresca adoçada com mel quando termino o meu trabalho. Água fresca que quase sempre acompanho com uma cidrada deliciosa, dessa que se costuma comer no Natal, mas que o mestre Lopo tem artes de vender todo o ano. O tal ancião, senhor cheio de carnes, bem trajado e de gestos lentos, diz-me que, em verdade, todos os tempos são difíceis. E porque ele deve ser apenas um pouco mais novo do que o meu avô, perguntei-lhe se há cinquenta anos atrás o céu era mais, azul, o sol mais quente, os frutos mais saborosos e as moças mais belas. Riu-se e respondeu que sim, que nessa era a sua jovem pele sentia melhor o calor do sol, a sua vista, o seu paladar e o seu olfacto eram mais apurados e, portanto, o céu lhe parecia mais azul do que agora que quase o vê cinzento e tudo lhe parecia mais saboroso nesse tempo. Quanto às moças, não está de acordo com o meu avô - menos recatadas as de agora, talvez, mas menos formosas, nem pensar.
Sou copiador no Tombo. Meu pai, que também ali trabalha, me ensinou a profissão. E já vai dizendo que na sua geração se escrevia bem melhor. Que àquilo que eu e os outros moços fazemos, só por bondade do senhor guardador se pode chamar cópias. Já vejo que de era para era as coisas vão piorando sempre e que a mim me coube viver o tempo mais desgraçado desde a criação do Mundo. Paciência. Enquanto a filha do tanoeiro, a minha vizinha Matilde me sorrir da sua janela, iluminando-me as manhãs, e eu em sonhos a puder amar, suportarei com alegria o infortúnio de viver em tempo tão ruim e adverso. O zelador dos copistas, disse há dias que nas Alemanhas inventaram um engenho que permite fazer mais de cem cópias sem intervenção de calígrafos. E fez um desenho: uma geringonça com duas pernas e dois pés, dois someiros grandes e dois pequenos, uns em cima e outros em baixo de uma grade com correntes de ferro... Coisa complicada e sem nexo, mais parecendo um aparelho de lagar. Nós, os moços, rimos muito e connosco o mestre Gonçalo. Mais de cem cópias sem intervenção humana... Quem quiser que acredite!
Esse ancião com quem falo e a quem já mostrei exemplos da minha caligrafia, diz, ao contrário de meu pai, que, se perseverar, virei a ser um bom copista. E parece ser pessoa entendida no assunto, pois me fez sobre o tema algumas daquelas perguntas que só as pessoas de muito saber costumam fazer - perguntas que já transportam consigo a resposta. Conhece as crónicas em cujas cópias trabalho. Ainda há dias, cismando na afirmação de meu avô, eu lhe dizia que o cronista dos perturbados tempos do cerco, era em que, mais ou menos o meu interlocutor deve ter nascido (tão velho é!), afirmava que a geração seguinte à do cerco, justamente a dele e do meu avô, foi bem-aventurada relativamente à desgraçada era do cerco castelhano. E ele, lestamente, citou de memória o trecho que eu dissera por palavras minhas: «Ó geração que depois veio, povo bem-aventurado que não soube parte de tantos males nem foi quinhoeiro de tais padecimentos!»
Parece também conhecer por dentro a Torre Albarrã, o casarão rente à cerca velha, onde trabalhamos. Foi ele quem me disse que o senhor D. Afonso II ali mandou guardar o tesouro real e a respectiva documentação. Servia também de depósito para o produto dos impostos e rendas. Por isso lhe chamam Torre do Haver. El-rei D. Fernando, de triste memória, mandou lá recolher também o arquivo do Estado. O serviço mais importante que ali se prestava era o de passar certidões de livros de inquirições, de chancelarias, de aforamento, de doações, etc. Eram requeridas pelo contador e passadas pelo notário público. Diz ele que, a partir de certa altura, pela era de 1418, começou a Torre a ter mais nobres missões, tais como a de pôr em crónicas as historias dos reis que antigamente em Portugal reinaram, bem como o de exaltar os seus grandes feitos e virtudes.
Eu sei, disse-lhe eu, são essas crónicas que copio dia após dia. Meu pai diz-me que foram escritas pelo anterior guardador das escrituras, o mestre Fernão Lopes. De pouca valia terá sido esse escrivão, não te parece rapaz?, perguntou franzindo os olhos. Irritou-me o seu desdém. Não diga isso senhor! A mim, que estou tantas horas mergulhado nas suas palavras, parece-me pessoa de vasto saber, mas a minha opinião nada vale, pois, segundo o meu avô e o meu pai, nasci num tempo em que Deus Nosso Senhor foi avaro na distribuição do siso. Para meu pai, o mestre Fernão Lopes é o mais sábio dos homens. Pois diz ao teu pai que se quiser subir em valimento e haveres não deve defender muitas opiniões como essa. A dureza das palavras era, no entanto, suavizada pela emoção com que as proferiu. Não percebi bem o que ele queria dizer, mas recados destes não os dou eu ao meu pai. A vergasta com que me punia os desaforos tem estado inactiva desde há uns anos. Muito me apraz que assim seja. Porém, nunca se sabe...

UM VIZINHO DE ALFAMA


Fernão Lopes, escultura  no monumento a Camões, em Lisboa.
 Tanto saber intrigou-me. Um dia em que, sozinho, bebia o meu fresco hidromel e saboreava a minha cidrada, perguntei ao locandeiro quem é aquele afável ancião, tão diferente do meu avô, casmurro e condenador de tudo o que é novo. É um vizinho de Alfama, disse-me ele. Mora junto à igreja de S. Miguel. É casado com Mor Lourenço, tia da mulher do sapateiro que tem a tenda ali perto, na Rua das Pedras Negras, logo atrás da Capela de Santo António. Gente de muitos cabedais. Até têm uma propriedade agrícola na Aldeia Galega. Só isso?, perguntei incrédulo, porque o mestre Lopo sabe a vida de todos os vizinhos de Alfama, de São Mamede à Rua do Bairro dos Escolares, de São Pedro à Rua do Santo Espírito. Nem cães nem gatos escapam à sua alcoviteira crónica. Bem, disse ele com um sorriso sorneiro, até há dois anos foi o guarda das escrituras do registo del-rei. E cronista-mor do reino, durante os últimos vinte anos.
Mas esse é o mestre Fernão Lopes, de quem meu pai tanto fala e com tal veneração como se de pessoa divina se tratasse! É esse mesmo, respondeu o tendeiro. É para que vejas que à minha taverna não vêm somente catraios ranhosos como tu. Em pensamentos chamei-lhe merdilheiro, que é o tratamento que o meu avô dispensa a quem despreza (a quem sente rancuna chama fi de puta). Fiquei a pensar na minha anterior conversa com o ancião. Menos mal, que a opinião de meu pai que incautamente lhe transmiti, não era ofensiva, antes pelo contrário. Acabei a minha bebida, paguei-a e desci até à Rua Nova, onde os mercadores fechavam já as suas tendas.

 ALGUMAS CONFIDÊNCIAS


O Infante Santo dá um livro a Fernão Lopes. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
 Na tarde seguinte, quando deixei a torre Albarrã e caminhei asinha até à taverna do mestre Lopo, estava com a esperança de poder falar ao mestre Fernão Lopes. Quando dissesse a meu pai a frequência com que conversava com tal figura, talvez ele me passasse a olhar com um pouco mais de consideração.
Tive sorte. O mestre lá estava, na sua mesa habitual, sacudindo as moscas com um ar pensativo e triste. Pedi licença para me sentar, puxei um banco e fui directo ao assunto (a minha mãe diz sempre que eu sou desaforado. Se ela soubesse o nó que se me forma na garganta sempre que na rua me cruzo com a Matilde! Perante a sua beleza, o seu perfume, o seu sorriso, fico gago e só me lembro de dizer tontices e banalidades).
Senhor, disse eu, já sei quem vossa senhoria é. Olhou-me longamente. Não sabes quem eu sou, sabes quem eu fui. Não descortinei logo a subtileza nostálgica. Falei-lhe novamente de meu pai. Ele sabia muito bem de quem eu era filho, pois o mestre Lopo (esse grande alcoveta!), já lho dissera. Contou-me então como na era de 1418 fora nomeado para guarda das escrituras do Tombo e como escrivão dos livros do Infante D. Duarte, Deus guarde a sua alma. Foi depois também escrivão dos livros del-rei D. João e escrivão da puridade do Infante D. Fernando, de santa memória. Não o acompanhei no martírio de Marrocos, disse ele com olhos rasos de lágrimas, pois já era velho para tais andanças, mas com ele foi o meu filho Martinho, seu médico de cabeceira, que por lá morreu também. Pobre e santo infante! Deixou-me em testamento cinquenta mil réis e um livro que guardo com grande estima, um livro de linguagem chamado Ermo Espiritual. Com as cavalarias de África foi tudo o que ganhei, dinheiro, um livro e as mortes de um amigo e de um filho. Não era bem isto que eu queria que ele me contasse, mas escutei-o em silêncio como cumpre a um moço respeitador, que me prezo de ser.
Nesse dia, não lhe arranquei mais nada. Depois de ter evocado o infante e o filho, o mestre ficou-se de olhar perdido na rua onde o pregoeiro passou, gritando para as janelas que era obrigação de todos pôr guarda ao fogo, não fosse um incêndio devorar estas casas tão encostadas umas às outras como donzelas friorentas. Mestre Lopo acendera também já as candeias. Minha mãe ficaria em cuidado se não chegasse antes da noite cair por completo. Despedi-me do meu ilustre companheiro, que me fez um aceno distraído e subi a Rua Direita da Porta da Sé até São João da Praça, onde moro com os meus pais e avós.

AS REVELAÇÕES
Batalha de Aljubarrota, segundo iluminura da Crónica de Inglaterra, Jean Waurin (Museu Britânico).
 Durante alguns dias não o encontrei. Quando voltámos a conversar, ataquei de frente o tema que me obcecava: Senhor, peço desculpa se for inconveniente o que vou perguntar. Sou um moço um tanto estúpido e de entendimento pouco lesto. Ele pôs uma expressão divertida. Diz lá, rapaz. Vossa senhoria disse aqui há dias que meu pai não deveria elogiar-vos se não queria ter dissabores, mais ou menos isso. Porquê? Demorou tanto a responder que pensei que não tivesse ouvido. E quando falou não foi para esclarecer a minha dúvida. O pouco que sei, disse ele, bebi-o na biblioteca real. Aristóteles, Santo Agostinho, Cícero, Séneca, Petrarca... Com estes mestres aprendi que a justiça é madre de todas as virtudes. Fez uma pausa longa. Foi para guardar justiça, para que os direitos e privilégios dos povos sejam respeitados que existem os príncipes. Os príncipes ou zelam para que a justiça exista na terra ou não se justifica o mandato que receberam de Deus. Quando se nega justiça a alguém, injuria-se Deus, o príncipe e a terra. Sem justiça não há sossego em nenhuma cidade ou reino, pois assim como a alma suporta o corpo, a justiça suporta os reinos.
Eu concordava com tudo, embora sem perceber qual a relação de tão justas e sábias palavras com a pergunta que lhe fizera. Viria a perceber uns dias depois.
Foi noutra tarde que, eu bebendo a minha água e ele um pouco de vinho e ambos comendo a deliciosa cidrada, voltámos à conversa que ficara interrompida dias antes. O meu trabalho na Torre, disse ele, fez-me merecer a confiança da corte. Fui escrivão da puridade do infante D. Fernando. D. Duarte, ainda infante, encarregou-me em 1419 de organizar uma crónica geral do Reino, referindo todos os reinados anteriores a D. João I. Pouco depois de subir ao trono, em 1434, atribuiu-me uma tença pelo trabalho que eu estava a realizar dentro desse plano. Em 1439, o regente D. Pedro confirmou a tença que D. Duarte, que entretanto faleceu, me havia concedido. Foi nesta era que se deu o levantamento popular contra a rainha D. Leonor e a proclamação do regente. Em 1443 o partido da rainha e da nobreza estava conspirando para abrir caminho à invasão castelhana e por todo o Reino o povo se levantou em armas. Foi com esta inspiração que escrevi o texto sobre o cerco de Lisboa de sessenta anos antes. Embora a era fosse diferente o entusiasmo que se respirava era certamente igual. E novamente fomos vitoriosos. Em 1449 o senhor D. Pedro atribuiu-me uma nova tença, sinal de que o meu trabalho merecia a sua aprovação. Como te disse, nos meus escritos sempre realcei o papel dos vilões e da gente miúda, porque o povo, o bem do povo, é que justifica que haja governantes e não o contrário, como muitos nobres nos querem fazer acreditar. Esse era também o sentimento do regente e foi essa convicção que o perdeu.
Com a morte do senhor D. Pedro em Alfarrobeira tudo mudou. El-rei D. Afonso aumentou o valor da minha tença e isso parecia significar que também a ele e aos seus validos o meu trabalho agradava. Assim não era. Os tempos mudavam. Os senhores voltavam a pôr o pé sobre os direitos dos súbditos. A minha escrita não convinha. Estava velha para a nova era, disseram. Conservaram o meu cargo de guarda-mor do Tombo, mas foram admitindo o filho de um cónego, criado na corte e habituado a vergar a coluna como os lacaios, coisa que a minha avançada idade já não permite. E a dobrar a pena aos interesses dos senhores, coisa que os meus mestres, aqueles que me ensinaram que a justiça é a madre de todas as virtudes, nunca me perdoariam. Em 1454 mandaram-me para casa, dizendo que estou velho. O que nem é mentira. Aqui tens rapaz a razão pela qual não é conveniente para ninguém gabar o meu trabalho. Vê se explicas isto ao teu pai.
Vou tentar, disse-lhe eu.

CARTA À FORMOSA MATILDE

Fernão Lopes diverte-se com os amores do jovem copiador. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
 Quando cheguei à taverna o mestre reparou no meu ar triste, pois vinha de me cruzar na Rua Nova com a bela Matilde que comprava uma coifa de linho num tendeiro judeu. Ela estava com uma senhora mais velha, sua tia. Ao vê-la, continuei a andar, mas sem olhar o chão como é sempre aconselhável nas ruas de comércio. De súbito, uma galinha embaraçou-se-me nas pernas e começou aos saltos e a cacarejar assustada, com medo de que eu a pisasse. Para evitar causar dano ao estúpido animal, quase perdi o equilíbrio e só não caí porque me amparei a uma velhota gorda que, agastada, me empurrou, gritando feios impropérios. Matilde seguiu toda a cena e riu-se muito, acompanhada pela tia. Senti o sangue chegar-me ao rosto e, por certo com pena da minha turbação, tapou os alvos dentes e tentou pôr um ar sério quando me fez um aceno. Mas logo que, nervosamente, correspondi ao seu cumprimento e passei, senti estoirar nas minhas costas as gargalhadas das duas. Que funesta ideia a minha de ir à Rua Nova antes de passar pela locanda!
O mestre Fernão Lopes riu-se da minha cara. O que tens rapaz? E insistiu em saber qual era o meu tormento. É um amigo meu que está morto de amores por uma moça que dele se ri, disse eu. E tão infeliz estás por causa do teu amigo?, perguntou ele zombeteiro. Enchendo-me de audácia, disse-lhe, pois é, mestre, esse amigo está apaixonado por uma donzela de tão grande formosura que quando a vê, quando a encontra na rua ou na missa, fica sem poder falar. Quer dizer-lhe como a acha bela e gostaria de saber se pode acalentar alguma esperança, mas fica com a voz tolhida. É um grande problema, disse o ancião, mas isso acontece. O que o teu amigo devia fazer era escrever uma carta à donzela. Uma carta?, perguntei eu. Sim, uma carta, dizendo-lhe isso mesmo, que, para ele, ela é a rainha da formosura, que a ama. e perguntando-lhe se é correspondido. E depois, caso ela não se enfade, deve começar a dirigir-lhe algumas palavras. Como vês, é simples.

CHUVA DE MAIO
Lisboa durante a Revolução de 1383-1385 (Crónica de D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão, 1520)
 É Primavera. Chove muito. Vou asinha e feliz, pois Matilde não ficou enfadada com o bilhete que ontem lhe entreguei. Hoje pela manhã, olhei a medo para a sua janela e ela lá estava, apesar do mau tempo. Sorriu-me e, embora a chuva lhe molhasse o formoso rosto, ou foi imaginação minha, ou demorou muito mais tempo a fechar a janela do que habitualmente. Amanhã dar-lhe-ei os bons dias. Com cuidado e em baixa voz, pois o tanoeiro tem má catadura. Tenho de contar ao mestre como estou feliz (como o meu amigo está feliz!) e como o seu conselho parece ter dado frutos. Vou descendo Alfama em direcção à Catedral. Talvez encontre o mestre Fernão Lopes na locanda da Rua da Porta do Mar. Talvez ele me conte mais alguma coisa sobre a sua vida, pois vejo que me falou das suas obras, que, aliás, posso ler sempre que quero. Porém dele, quase nada me disse. Só aquilo que a sua escrita permite adivinhar. Será que também esteve apaixonado quando tinha a minha idade? Será que também entregou cartas secretas a Mor Lourenço? Vou tentar saber. Com cuidado, é claro. Não sou tão desaforado como minha mãe diz.
As gaivotas acoitam-se nos beirais, enxotando os pombos. No Tejo, um barinel corta as águas agitadas do Mar da Palha. A armada que el-rei mandou aparelhar contra o turco, naus, caravelas, fustas, transforma o Tejo numa floresta de mastros. O meu avô diz que a Natureza anda mudada, que no seu tempo o mês de Maio era amável e temperado, que nunca chovia desta copiosa forma. Diz ele que as ofensas dos homens ao Senhor acarretam o castigo divino - calamidades e transformação na ordem natural do Universo. Não sei se ele tem razão. Só conheço o meu tempo.
E gosto muito que chova, ainda que seja em Maio.


* DOCUMENTÁRIO: FERNÃO LOPES - SIMPLESMENTE A VERDADE


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