HÁ 40 ANOS O DESESPERO DOS "RETORNADOS" - A DESCOLONIZAÇÃO EXEMPLAR
Aqui se revela um olhar exaustivo sobre o processo de descolonização de Angola e Moçambique, com informação que então não era publicada em Portugal, para não estragar a imagem da "Descolonização Exemplar".
Conheça como foram as negociações, passo a passo, acordo a acordo; Quais os principais intervenientes nas negociações; As traições cometidas ao povo e a forma como foram ultrapassados alguns dos negociadores; Quais os artigos que "venderam" os colonos Portugueses e como foram redigidos; Como a população viveu essa época, etc... Pode ainda ver aqui, fotos da época.
Por certo não será uma visão agradável a muitos, assim como nem todos estarão de acordo com o que aqui é retratado.No entanto, considero que este artigo é bastante fiel com os acontecimentos que se deram naqueles terríveis anos de 1974 e 1975, ondd a nossa Nação foi irremediavelmente traída, amputada dos seus territórios e das suas principais fontes de sustentação económica, sem terem sido acauteladas as consequências nem para os colonos Portugueses, nem para as populações indígenas, que como poderão aqui ler, fugiam com os Portugueses, porque não queriam esse destino que lhes estaria reservado pelas milicias armadas e os exércitos particulares que tomariam o poder.
Texto: Português
Áudio: Português
Fontes: Observador - RTP Arquivo
Há 40 anos, o desespero dos retornados: Tirem-nos daqui!
Setembro de 1975. Todos os dias chegam a Lisboa ou ao Porto mais de quatro mil portugueses fugidos da África. Refugiados, foram "os retornados". Por todo o lado soava um apelo: "Tirem-nos daqui!"
- “Queremos uma ponte aérea como no Vietnam!”
- “Através da janela podia ver os deslocados, os fugitivos, os perseguidos…”
- O que aconteceu à quarta força?
- Por Angola, Spínola trava o seu último combate. Perdeu
- A caça aos reaccionários
- O caso “do marido da senhora grávida”
- Demasiadas coincidências
- Condenados a lutar
- “Em legítimos cabe tudo”
- Trocam-se maços de tabaco por automóveis…
- A Longa Marcha
Tiraram-nos. Mas houve quem nunca lhes perdoasse terem denegrido a imagem da Revolução e da descolonização exemplar.
Em poucos meses, Angola transformou-se numa armadilha
fatal para milhares de pessoas. Presos naquela terra que tinham
considerado um paraíso, vêem a guerra instalar-se nas zonas de onde as
Forças Armadas Portuguesas retiram.
A isto acresce que em Angola os fugitivos se contam por várias centenas de milhar, o que, a par da atenção suscitada pela internacionalização do conflito leva a que aqueles que pretendem fugir de Angola não possam ser pura e simplesmente ignorados e deixados à sua sorte, como tinha sucedido e continuava a suceder em Moçambique. Aí a criação de uma ponte aérea, quer antes quer depois da independência, vai sempre ser rejeitada sob o pretexto de que tal operação se tratava de uma manobra imperialista, tanto pela FRELIMO como por Portugal. Consequentemente sobre os retornados de Moçambique pairará sempre, a par de uma grande ignorância sobre o seu destino, o ónus ideológico: eles não fugiam da guerra como os retornados de Angola, fugiam de um regime que Lisboa e o mundo aplaudiam, pelo menos em público. Já em Angola a guerra permite transformar num drama aquilo que até esse momento não passara de uma manifestação de colonialismo.
“Queremos uma ponte aérea como no Vietnam!”
Desde Junho de 1975 que se sucediam em Luanda as manifestações junto ao Palácio do Governo. Há quem ali acampe, durma, cozinhe. Brancos e negros exigem que os tirem dali para fora: os primeiros para fora de Angola. Os segundos para outros locais daquele país ou também para fora de Angola: “Ontem desfilaram pelas ruas de Luanda, com grandes estandartes, cerca de um milhar de pessoas, homens, mulheres e crianças, que se dirigiram ao palácio do Governo e solicitar passagens de regresso a Portugal”, lê-se no Diário Popular de 6 de Junho de 1975, que em seguida escreve com alguma perplexidade: “O mais impressionante é que no meio dessa multidão também se viam mestiços e pretos.”Enquanto essa manifestação silenciosa atravessava Luanda, centenas e centenas de pessoas permaneciam paradas junto das portas das agências de viagens e das companhias de transportes aéreos e marítimos. O que queriam? Bilhetes para Lisboa.
As manifestações e as filas vão suceder-se nessa cidade de Luanda onde o quotidiano se faz cada vez mais difícil: falta o pão, o lixo deixa de ser recolhido, os transportes funcionam de forma irregular, o número de refugiados não pára de aumentar — porque se há quem queira sair de Luanda, particularmente a população negra, há também quem aflua a Luanda, sobretudo brancos que procuram deixar Angola.
A 12 de Abril de 1975 o Expresso informava que nesse ano
não tinha dado entrada nenhum projecto de construção na Câmara
Municipal de Luanda. Os depósitos bancários diminuíam. Várias indústrias
paravam por falta de matéria-prima. Nos portos acumulavam-se
mercadorias à espera que os bloqueios terminassem e fossem finalmente
embarcadas.
“Dos 300 médicos em serviço na altura do 25 de Abril, apenas restavam 180 quando o Governo de Transição tomou posse [31 de Janeiro de 1975]. No presente [Maio] e em consequência directa dos últimos acontecimentos, notou-se um movimento generalizado de partidas quer de médicos, quer de enfermeiros e até de pessoal auxiliar”.
O que Gonçalves Ribeiro ainda ignorava é que daí a três meses vai ser ele a impor a Lisboa a realização de uma ponte aérea para retirar de Angola todos os portugueses que quisessem partir.
À medida que as folhas do calendário caem nesse ano de 1975, Angola entra numa contagem decrescente em que todos se preparam para Novembro. Em Julho, MPLA e FNLA lutam impiedosamente pelo controlo da capital naquela que ficou conhecida como a batalha de Luanda. Que é o mesmo que dizer que combatem pelo estatuto de governante oficial de Angola quando, daí a meses, for declarada a independência. Já a UNITA deixa a capital e prepara-se para fazer do sul o seu quartel-general.
“Através da janela podia ver os deslocados, os fugitivos, os perseguidos…”
Desses dias agónicos de Julho de 1975 uma imagem ficará na memória do Alto-Comissário Silva Cardoso: uma mulher avança por entre a multidão que se aglomera junto ao edifício a que impropriamente se chamava palácio. Pretende entregar algo que leva nos braços ao Alto-Comissário. Era o cadáver do filho: “A violência recrudescera por toda a parte, tinham aparecido corpos de pessoas há muito desaparecidas, mais saques, mais violações, mais gente raptada, todo um rol de atrocidades que continuavam a passar impunes visto a ordem e a segurança terem sido praticamente banidas de todo o território. Era o salve-se quem puder! (…)” – recorda Silva Cardoso em Angola anatomia de uma tragédia. “Através da janela podia ver os deslocados, os fugitivos, os perseguidos, os inconformados que vagueavam em frente do palácio, talvez por se sentirem ali mais seguros ou ainda esperarem uma qualquer solução para os seus problemas.”
Uma mulher avança por entre a multidão que se aglomera
junto ao edifício a que impropriamente se chamava palácio. Pretende
entregar algo que leva nos braços ao Alto-Comissário. Era o cadáver
do filho
Sem se manifestarem à época publicamente deste modo, vamos encontrar a mesma constatação nas memórias de homens como Silva Cardoso e Gonçalves Ribeiro, sobretudo em relação à FNLA, cujos ministros a circular de pistola na mão pelos corredores e vasculhando os seus gabinetes à procura do dinheiro do orçamento dos seus ministérios ficaram na memória de quem com eles privou.
Num sinal inequívoco da tragédia mais que anunciada para Angola, várias companhias aéreas, como a British Airtours e a South African Airways, deixam de voar logo em Maio de 1975 para aquele território. A 27 de Julho um DC-10 recolhe 60 cidadãos britânicos no aeroporto de Luanda. A 29 partem os franceses, belgas, italianos, alemães, suíços e austríacos. Tinham passado dois meses desde que os respectivos consulados começaram a dar instruções aos seus concidadãos para partirem.
No início do Verão de 1975 já não existem dúvidas sobre
qual vai ser o futuro de Angola: a guerra. Enquanto ela não chega de
forma declarada a maioria da população branca trava as suas batalhas. A
primeira é a da sobrevivência. A segunda, obrigar Lisboa a acabar com as
ambiguidades e pôr em marcha finalmente a ponte aérea.
Às vezes acontece até terem de se criar incidentes num determinado local para que a sua chegada e a das suas bagagens possam ser feitas, logo ali ao lado, sem que ninguém dê por isso. Como aconteceu na noite de 28 para 29 de Abril de 1975 quando um intenso tiroteio e sucessivas explosões na zona do Bairro Operário, em Luanda, serviram para desviar as atenções do que estava a acontecer numa das docas da cidade: do navio jugoslavo Postoyna viaturas pesadas afectas ao MPLA descarregavam armas enviadas pela URSS para aquele movimento.
No início do Verão de 1975 já não existem dúvidas sobre qual vai ser o futuro de Angola: a guerra. Enquanto ela não chega de forma declarada a maioria da população branca trava as suas batalhas. A primeira é a da sobrevivência. A segunda, obrigar Lisboa a acabar com as ambiguidades e pôr em marcha finalmente a ponte aérea que os tire de Angola e que dentro de Angola os retire dos locais de onde já não conseguem partir pelos seus meios.
O que aconteceu à quarta força?
Vendo as imagens dessa gente amontoada no aeroporto de Luanda aguardando embarcar, acampada em instalações militares à espera de protecção ou que arrisca a vida para sair de automóvel ou barco de Angola é difícil acreditar que há poucos meses eles eram apresentados como o maior obstáculo ao futuro de uma Angola livre, democrática e independente.
Durante os meses em que a catástrofe ainda não se impôs,
Lisboa tem oficialmente um inimigo em Angola. Chama-se "rodesiação". O
que na prática se traduzia por uma independência declarada pelos
brancos.
Durante os meses em que a catástrofe ainda não se impôs, Lisboa tem oficialmente um inimigo em Angola. Chama-se “rodesiação”. O que na prática se traduzia por uma independência declarada pelos brancos. Logo em Agosto de 1974, Vasco Gonçalves avisava: “Já foram adoptadas medidas contra qualquer possibilidade de uma rodesiação de Angola”. Vasco Gonçalves não detalha quais eram essas medidas nem o que tinham os defensores dessa tal rodesiação a ver com a insegurança que se começava a manifestar naquele território e que já obrigara à reabertura do Campo Prisional de São Nicolau para onde em poucas semanas são levados 514 detidos. Mas Mário Soares fá-lo na entrevista que concede também em Agosto de 1974 à revista alemã Spiegel:
Mário Soares – Em Angola haverá certamente uma série de situações mais ou menos desesperadas e tensões perigosas entre as raças. Apesar disso, julgo que por ora o exército pode e fará manter a ordem – a ordem democrática.
Spiegel – Portanto, se necessário, o exército português fará fogo sobre portugueses brancos?
Mário Soares – Ele não hesitará e não pode hesitar. O exército já mostrou que tem mão forte e quer manter a ordem a todo o custo. (…) Não creio que em Angola exista uma solução rodesiana, mas se tal acontecesse combatê-la-íamos com todas as nossas forças, pois uma tal solução seria para África e para o Mundo uma aventura inaceitável.
Spiegel – Também se pensou isso no caso da Rodésia e, no entanto, não se pôde evitar.
Mário Soares – Para nós tal solução é improvável a não ser que tivéssemos um golpe de direita aqui em Portugal. Nós – este governo democrático – não permitirá que tal solução rodesiana aconteça em Angola ou Moçambique. Eu repito! Nós combatê-la-emos com todos os meios ao nosso dispor.
Mário Soares,que negociará a independência de Angola e dos outros territórios sem os conhecer previamente (a excepção é São Tomé onde estivera exilado nos anos 60) ou sequer os visitar durante as negociações, confirma os cenários de optimismo que então se aplicavam automaticamente na hora de falar de descolonização: só alguns fugirão “por medo” mas logo regressarão. Para o então ministro dos Negócios Estrangeiros as razões dessa fuga resultam de uma espécie de resistência às dinâmicas da luta de classes: em Angola, explica “generaliza-se entre os brancos uma atitude perigosa. Precisamos de convencer os brancos, no seu próprio interesse, que fiquem, mas já não como patrões, como até agora.”
Em Agosto de 1974 começou a chegar a Lisboa a primeira
leva de retornados que resultou dos incidentes nos musseques de Luanda
em Julho de 1974.
Mário Soares parte invariavelmente do princípio de que apenas por erros e defeitos dos brancos eles poderão ter problemas nas novas nações africanas: “Se forem leais para com os novos Estados independentes na cooperação e respeitarem as suas leis, não têm nada a temer.” E se essas leis fossem anti-democráticas? Ou completamente absurdas, como sucederá em Moçambique onde a par da proibição da medicina privada se criminaliza a realização de funerais por agentes funerários privados pois os enterramentos passavam para o encargo de um estatal Serviço Funerário que só existia no papel? Essas hipóteses não se colocam a Mário Soares que também não refere os negros, pois era para todos inquestionável que, em cada um dos territórios, se reviam em absoluto nos movimentos reconhecidos por Lisboa.
Estas tonitruantes declarações do então ministro dos Negócios Estrangeiro contrastam com a incapacidade manifestada por Lisboa para garantir a tranquilidade em Angola, nomeadamente em Luanda. E sobretudo contrastam com as declarações que Mário Soares faz mais tarde sobre o seu papel neste mesmo período: o então ministro dos Negócios Estrangeiros declarará confrontar-se nessa fase, Agosto de 1974, com a sucessiva desautorização da sua pessoa pelos militares, nomeadamente por Melo Antunes, nas negociações sobre a independência de Moçambique. O único que se pode concluir é que se à época Mário Soares teve essa percepção, ela não se traduziu de modo algum em moderação nas suas palavras e prudência nos seus gestos no que respeita a Angola.
Spínola, rendido à evidência de que já nada podia fazer
para evitar que apenas a Frelimo fosse aceite com interlocutora do povo
moçambicano, procurava que em Angola, além do MPLA, da UNITA e da FNLA
outros partidos e associações fossem chamados a negociar no processo
de angolano.
Por Angola, Spínola trava o seu último combate. Perdeu
A 27 de Setembro de 1974, Spínola encontra-se com representantes de várias associações e partidos angolanos. Com aquele barroquismo de linguagem que caracterizava o então presidente da República, este chama-lhes as “forças vivas de Angola”. Estes 26 dirigentes angolanos haviam chegado a Lisboa na véspera.Alguns dos recém-chegados fazem declarações aos jornalistas, como sucede com António Ferronha, do Partido Cristão-Democrático de Angola, e o director do jornal A Província de Angola, Rui Correia de Freitas. Reiteram a sua convicção na capacidade de os angolanos escolherem o futuro da sua terra. Mas logo no aeroporto se percebe que a sua vinda a Lisboa fizera soar alguns alarmes: uma manifestação de apoio ao MPLA decorre na rua. À medida que a delegação sai do aeroporto é recebida ao som de palavras de ordem como “Morte aos traidores”. A saída do aeroporto atrasa-se. Foi uma recepção atribulada para uma estadia ainda mais atribulada.
À medida que a delegação das “forças vivas” de Angola
sai do aeroporto é recebida ao som de palavras de ordem como "Morte aos
traidores". A saída do aeroporto atrasa-se. Foi uma recepção atribulada
para uma estadia ainda mais atribulada.
“Não há forma alguma de compatibilizar os direitos fundamentais da pessoa humana com arquitecturas sociais cuja essência dogmática exclua a liberdade de opção política. E porque a descolonização decorre exactamente do reconhecimento daqueles direitos, resulta de flagrante incoerência todo o processo de descolonização que ignore o sufrágio popular”.
Anuncia a redacção de uma Lei Eleitoral e a realização de um recenseamento em Angola, instrumentos indispensáveis à promessa que faz de celebração de eleições para uma Assembleia Constituinte até Outubro de 1976.
O discurso de Spínola tem um enorme impacto em Angola. Rosa Coutinho percebe o perigo daquelas palavras e, como assinala Alexandra Marques, em Segredos da Descolonização de Angola: “O discurso presidencial foi publicado na íntegra na Imprensa de Luanda e deu origem, nesse mesmo dia, à implantação do primeiro período de censura à liberdade de informação em Angola.” A expulsão de jornalistas e a suspensão de publicações fecha o círculo de coacção em torno da informação em Angola.
Horas depois deste encontro entre Spínola e os dirigentes angolanos, Lisboa entrava em clima de intentona. Era o golpe do 28 de Setembro que não por acaso ficaria conhecido a “inventona do 28 de Setembro.”
Travar Spínola era essencial para que em Angola se
pudesse repetir a táctica usada com sucesso em Moçambique e também
na Guiné.
A deturpação do processo de descolonização (neste vídeo, aos 6 minutos) é uma das razões apresentadas por Spínola para a decisão que tomou: renunciar ao cargo de Presidente da República.
* VER VÍDEO DO DISCURSO DO Dr. SPÍNOLA DE RENUNCIA À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA - ACTIVAR O LINK ABAIXO:
A caça aos reaccionários
Durante o 28 de Setembro houve prisões em Lisboa e no Porto mas sobretudo houve prisões em Angola e Moçambique naquilo que o Diário de Notícias define, a 26 de Outubro de 1974, como “Ramificação do 28 de Setembro além-Atlântico”. Essas ramificações não mais cessavam de ser encontradas.Em Outubro, em Angola, é “Desmantelada uma intentona reaccionária”. São emitidos mandatos de captura contra militares e dirigentes políticos. Entre estes últimos contam-se algumas das personalidade que, como era o caso de António Ferronha, tinham vindo a Lisboa à reunião com Spínola.
Em Novembro, também em Angola, é a vez da descoberta da “sabotagem económica”: “Lamento ter que anunciar que foram feitas esta madrugada em Luanda algumas detenções de personalidades importantes na vida angolana que muito me desagrada tenham-se imiscuido em processos que ultrapassam os de natureza política e obrigaram a esta intervenção. Essas perrsonalidades foram já enviadas para Lisboa, a fim de serem interrogadas, e está em curso o respectivo inquérito. A acusação é simples mas delicada: fomentaram a sabotagem económica deste país” – comunica em Novembro de 1974, o almirante Rosa Coutinho, então presidente da Junta Governativa de Angola. Entre as personalidades em causa estava o advogado Fernandes Vieira, presidente da Associação Comercial de Luanda.
A polícia portuguesa prendeu quarenta brancos que se
preparavam para atravessar a fronteira de Angola para a Namíbia. Seriam
provavelmente entregues a um dos três movimentos. Mas presas porquê?
Qual terá sido o seu destino? Não sabemos?
Já em Moçambique havia recorrentes “manobras reaccionárias” efectuadas por “provocadores reaccionários”. Só a 20 de Dezembro foram presos 70 desses provocadores. Todas estas operações eram acompanhadas do anúncio de prisões e de comunicados que davam conta do envio para Lisboa ou da expulsão do respectivo território de parte desses detidos.
Os jornalistas portugueses e estrangeiros, as associações de direitos humanos e as igrejas, tão activas no passado, manifestam um impressionante desinteresse por estas prisões ou por situações em que o absurdo domina. Por exemplo, a 23 de Julho de 1975 informa O Século que “a polícia portuguesa prendeu quarenta brancos que se preparavam para atravessar a fronteira de Angola para o Sudoeste africano (Namíbia). Seriam provavelmente entregues a um dos três movimentos.” Mas presas porquê? Porque não ficava a polícia portuguesa com elas? E como escolheria a polícia portuguesa o movimento ao qual entregaria essas pessoas? Já agora acusadas de que crime? Qual terá sido o seu destino? Não sabemos.
Esse silêncio torna-se ainda mais perturbante quando se percebe que alguns desses presos passam a integrar a lista dos desaparecidos. Os desaparecidos tornam-se um símbolo do terror que se abate sobre a comunidade branca em Angola. Logo em 1974 multiplicam-se os casos de pessoas cujo paradeiro se desconhece e cujos carros são vistos pouco depois a circular nas mãos de grupos que ora se apresentam como sendo de um dos movimentos ora nem isso. Frequentemente dias depois são também encontrados os cadáveres dos proprietários. Correm nomes dos locais e das estradas como a Luanda-Dondo e Sá da Bandeira-Lobito onde o risco de ser assaltado é maior. Mas há outro tipo de desaparecimentos que aterroriza ainda mais a sociedade angolana. É acabar preso por um dos movimentos. Se esse movimento for o MPLA essa detenção pode ainda contar com a participação e cumplicidade de militares portugueses.
O caso “do marido da senhora grávida”
O chamado caso “do marido da senhora grávida” ilustra o que foram algumas dessas prisões às mãos dos movimentos bem como o clima de degradaçãoa que as Forças Armadas Portuguesas chegaram em Angola.Aparentemente o caso não se distingue de outros que já estavam a ocorrer nesse mês de Novembro de 1974 em Luanda: um homem que trabalhava num atelier de desenho desapareceu. A mulher estava à espera dele para almoçar, mas ele não chegou. Telefonou para o serviço, disseram-lhe que tinha ido almoçar a casa.
"Poucos dias depois chego ao briefing e dizem-me que
comunicaram da Polícia Militar, dizendo que estava um homem nu, amarrado
a uma árvore, na estrada do aeroporto. Era ele, o marido. Foi quatro
dias depois."
E é em plena reunião da Junta Governativa de Angola que se torna evidente a cumplicidade do MFA em alguns dos desaparecimentos. A Junta Governativa tinha cinco membros: Rosa Coutinho, que presidia; Altino de Magalhães comandante da Região Militar de Angola; Silva Cardoso, comandante da Região Aérea, Leonel Cardoso, comandante naval de Angola e Emílio da Silva, representante do MFA e assessor político de Rosa Coutinho.
Altino de Magalhães dirige-se a Rosa Coutinho e ameaça-o: “Ó almirante, já sabia que havia prisões privadas em Luanda, enfim, de boatos’ – porque o assunto era secreto. E prossegui: Mas agora estou perante um caso concreto. Um desaparecimento, e comandado de tal maneira que manda avisar a família para estar quietinha, porque senão matam-no. Depois virei-me para o Rosa Coutinho e disse-lhe: O homem tem de aparecer – e já! – , senão eu vou denunciar isto. E não fico mais num governo em que isto se passa… Falei com ar muito a sério. Lembro-me que o Silva Cardoso me apoiou. Sabe qual foi a reacção do Rosa Coutinho? Virou-se para o Emílio da Silva e disse: O homem tem de aparecer. O homem tem de aparecer… E eu acrescentei: Se não aparecer até amanhã de manhã, faço o que disse, vou para os jornais, vou-me embora, vou denunciar o que está a acontecer. O Rosa Coutinho voltou-se de novo para o Emílio da Silva e repetiu: O homem tem de aparecer.”
O homem apareceu: “No dia seguinte, pouco depois de ter chegado ao quartel-general, o Rosa Coutinho telefona-me e diz: O homem já está localizado! E vai aparecer, mas não pode ser já. Agora você tem de escolher: ou há uma bronca muito grande, ou confia em mim. Não aparece em 24 horas, mas aparece daqui a 48 horas. Dou a minha palavra de honra.(…) Poucos dias depois chego ao briefing e dizem-me que comunicaram da Polícia Militar, dizendo que estava um homem nu, amarrado a uma árvore, na estrada do aeroporto. Era ele, o marido. Foi quatro dias depois. Na altura não liguei uma coisa com a outra, mas nessa tarde recebe um telefonema, da mesma senhora. ‘Muito obrigada, o meu marido já cá está’. Depois foram os dois ao quartel-general agradecer-me”.
O que o homem relata torna evidente aquilo que já todos sabiam – militares portugueses estavam a entregar ao MPLA cidadãos para que este os interrogasse: “Pedi ao marido para relatar o que se tinha passado. Contou que foi apanhado no trajecto para casa, à hora do almoço, por fuzileiros navais, da nossa Marinha, fardados, que andavam num jipe militar. Meteram-no num carro e levaram-no até à porta do cemitério de Luanda, onde um carro do MPLA os aguardava. Passaram-no para o carro civil, deitaram-no no chão e levaram-no preso para os arredores. Taparam-lhe os olhos, andaram às voltas com ele, conduziram-no para um apartamento que ele não sabia onde ficava. Meteram-no numa casa de banho e interrogaram-no. Queriam saber quem era da FRA, Frente de Resistência de Angola (inimiga do Rosa Coutinho), a que ele não pertencia.”
Altino de Magalhães seria afastado por Rosa Coutinho pouco depois deste episódio tendo regressado a Lisboa ainda em Dezembro de 1974. Mas em Angola os desaparecimentos, nuns casos contando com a conivência noutros com a impotência dos militares portugueses, prosseguiram. Os jornais referiam brevemete os nomes dos desaparecidos: Mário Caninhas Lavadas, Manuel Fidalgo Mercês, José Dias, João Cândido Figueiredo… Quando em Julho de 1975, a médica Maria Fernanda Sá Pereira foi levada de sua casa por três homens para nunca mais ser vista o desaparecimento era apenas mais uma das tragédias com que Angola ia viver.
Demasiadas coincidências
O 28 de Setembro de 1974 levou a uma radicalização à esquerda da situação em Portugal. E em Angola facilitou e acelerou o desaparecimento das figurasque até então tinha lutado para que o processo angolano não se circunscrevesse a uma negociação “com os que nos combatem”, para usar uma expressão de Mário Soares na entrevista à Spiegel.Após a demissão de Spínola, a discussão em Angola vai rapidamente evoluir da questão – Quem se senta à mesa das negociações com os três movimentos? – para se centrar na pergunta: será que os três movimentos se vão sentar todos eles à mesa das negociações ou pelo menos um deles será afastado? Argel, Mombaça e Alvor são o roteiro da resposta a essas perguntas.
Nos mesmos dias de Novembro de 1974 em que Rosa Coutinho anunciava a prisão do presidente da Associação Comercial de Luanda, em Argel ficara acordado que nenhuma das poderosas associações económicas de Angola seria ouvida no chamado processo de descolonização. A mesma exclusão se aplica a quaisquer partidos ou movimentos além do MPLA, FNLA e UNITA.
Nos mesmos dias de Novembro de 1974 em que Rosa Coutinho
anunciava a prisão do presidente da Associação Comercial de Luanda, em
Argel ficara acordado que nenhuma das poderosas associações económicas
de Angola seria ouvida no chamado processo de descolonização.
À época pouco ou nada se sabe desse encontro. Os jornais portugueses e a RTP limitam-se a dizer que “as negociações seguem rodeadas do maior sigilo”, que Melo Antunes será recebido pelo presidente da Argélia e no fim que tudo decorreu num clima de “autêntica fraternidade”.
Aliás, no caso de Argel, tal como acontecera com a reunião mantida em Dar-es-Salam com a Frelimo no início de Agosto, saber-se-á muito mais pela imprensa internacional que portuguesa: a entrevista dada ao Liberation por Agostinho Neto poucos dias após este encontro em Argel torna embaraçoso o silêncio dos jornalistas portugueses que em alguns casos fazem pequenas transcrições dessa entrevista.
Este encontro de Argel reproduz o modus operandi das reuniões de Dar es Salam que prepararam a independência de Moçambique: um ministro sem pasta, Melo Antunes, toma decisões que os responsáveis políticos – Mários Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros, e Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial – dizem tê-los condicionado de forma irreversível.
De Argel em diante o que está em causa é tão só isto:
consegue a facção Chipenda sentar-se na mesa dos negociadores? Vão ou
não os movimentos criar um directório que unifique os seus homens
armados e através desse embrião de um exército angolano evitar a guerra
no país?
De Argel em diante o que está em causa é tão só isto: consegue a facção Chipenda sentar-se na mesa dos negociadores? Vão ou não os movimentos criar um directório que unifique os seus homens armados e através desse embrião de um exército angolano evitar a guerra no país?
Condenados a lutar
Reunidos em Mombaça, no Quénia, de 3 a 5 de Janeiro de 1975, os líderes da UNITA, MPLA e FNLA declaram ter criado uma “plataforma comum de entendimento” com vista às negociações com Portugal. Mas à excepção da declaração de que “Cabinda é Angola”, da proposta da repartição de lugares num futuro Governo de Transição, da criação de uma força militar conjunta aos três movimentos (comandada por quem?) e da calendarização da saída das tropas portuguesas, os líderes não resolvem nenhum dos problemas que estavam em cima da mesa. Eles esqueciam (ou faziam por esquecer) que em Janeiro de 1975 o futuro de Angola já não passava pelo que os movimentos negociassem com Portugal mas sim com aquilo que fossem capazes de negociar entre si. E isso nunca o fizeram antes nem o fariam depois. O desaparecimento da parte portuguesa após a independência (e mesmo antes dela) implicaria inevitavelmente que o simulacro de negociações fosse substituído pela verdade da guerra.No fim da cimeira de Mombaça, houve abraços e até se plantou uma árvore. Do destino da árvore não mais se soube mas o caminho seguido por cada um dos plantadores após esta cimeira no Quénia é simbólico de como o destino de Angola estava a ser traçado: Agostinho Neto regressou a Dar es Salam, na Tanzânia. Holden Roberto regressou a Kinshasa, no Zaire. Já Savimbi que viera de Lusaka, na Zâmbia, partiu para o Gabão e Senegal.
No Alvor, as delegações reúnem durante seis dias e cinco
noites. No fim as partes subscrevem um acordo que uns não quiseram
cumprir, outros não puderam cumprir e que sobretudo não era passível de
ser cumprido.
No Alvor, as delegações reúnem durante seis dias e cinco noites. No fim as partes subscrevem um acordo que uns não quiseram cumprir, outros não puderam cumprir e que sobretudo não era passível de ser cumprido: entre Janeiro e Novembro de 1975, em Angola havia que realizar o recenseamento(para mais dificultado pela existência de milhares de deslocados); tinha de se redigir uma Lei Eleitoral e efectuar eleições em Outubro. Havia ainda que conseguir transformar os exércitos privados e milícias de cada movimento numas forças armadas unificadas e com um comando aceite como legítimo. Tudo isto até 11 de Novembro de 1975, data escolhida para a independência.
Como escreve em Angola anatomia de uma tragédia Silva Cardoso, que enquanto membro da Junta Governativa viera ao Alvor, onde aliás será designado Alto-Comissário para aquele território: “Completa loucura, perfeita alucinação, tremenda traição! Mesmo que houvesse vontade política, mesmo que se dispusesse dum vasto conjunto de tecnocratas altamente qualificados nos vários campos específicos, a missão seria impossível.” Ao antecipar-se a data da independência para Novembro de 1975, transfere-se para as armas o papel que devia ser cumprido pelas instituições que não houve tempo nem intenção de criar.
Ao antecipar-se a data da independência para Novembro de
1975, transfere-se para as armas o papel que devia ser cumprido pelas
instituições que não houve tempo nem intenção de criar.
A violência entre os movimentos não era portanto uma questão de barbárie ou de inscrição em doutrinas totalitárias. Sendo isso verdade é apenas uma parte da verdade: para começar, a forma como as Forças Armadas Portuguesas retiraram, e com elas uma parte da população, deixando atrás de si localidades, instalações militares e bens à espera que alguém os tomasse levou a que a conquista desses territórios e meios se tornasse inevitável.
A 28 de Março de 1975 Almeida Santos declarava "Haverá
eleições em Angola tal como estava previsto". Mas menos de um mês
depois, a 24 de Abril, o mesmo Almeida Santos afirma: "Não acaba o Mundo
se Angola não tiver eleições."
É certo que ainda a 28 de Março de 1975 Almeida Santos declarava “Haverá eleições em Angola tal como estava previsto”. Mas menos de um mês depois, a 24 de Abril, o mesmo Almeida Santos afirma: “Não acaba o Mundo se Angola não tiver eleições.”
O Mundo esse não acabava, claro, mas a guerra essa ia começar em Angola: depois de só terem sido aceites como interlocutores “os que nos combatem”, aqueles que nos combateram iam ter de combater entre si.
Como declarou em Maio de 1975, Jacob Caetano João, o comandante “Monstro Imortal” do MPLA, ao general Silva Cardoso, então Alto-Comissário, após uma maratona de 30 horas para se conseguir mais um acordo de cessar de hostilidades, “disto só se sai, infelizmente, por um única caminho: o da força das armas”.
Como qualquer combatente experimentado, o “Monstro Imortal” sabia que em Angola a paz não era uma opção possível.
“Em legítimos cabe tudo”
O artigo 41º do Acordo de Alvor consagrou o que estava garantido desde Argel: “As candidaturas à Assembleia Constituinte serão apresentadas exclusivamente pelos movimentos de libertação – FNLA, MPLA e UNITA – únicos representantes legítimos do povo angolano.” Os movimentos revelam um cuidado extremo no controlo de todas as situações que pudessem dar qualquer representatividade àqueles que não se conformavam com esse seu monopólio.Conseguem, por exemplo, que Portugal se comprometa a que não têm qualquer vínculo a Angola as pessoas que vai designar para o Governo de Transição. Porquê? Temiam os movimentos que esses ministros acabassem a tornar-se nos representantes dos interesses e das queixas dessa Angola que mais do que não se rever num país governado pela FNLA, MPLA ou UNITA, descrê da capacidade destes movimentos para governar.
A pergunta que se coloca de Janeiro de 1975 em diante à
comunidade branca reduz-se a isto: é mais segura a filiação num dos
movimentos ou tentar manter as distâncias em relação a eles? Lisboa
insta-os a integrarem-se nos três movimentos.
“Quem é que os braços armados dos movimentos – não só as suas cúpulas, mas as suas estruturas descontroladas por todo aquele território – forçavam para terem tudo o que queriam? Casas, viaturas, combustível, alimentos, dinheiro? A comunidade branca.”– explica sob a forma de pergunta o general Gonçalves Ribeiro na entrevista que deu para o livro SOS Angola, da jornalista Rita Garcia.
E aqui chegamos ao artigo artigo 54º do Acordo de Alvor: “A FNLA, o MPLA e a UNITA comprometem-se a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses domiciliados em Angola.”
"Quem é que os braços armados dos movimentos – não só as
suas cúpulas, mas as suas estruturas descontroladas por todo aquele
território – forçavam para terem tudo o que queriam? Casas, viaturas,
combustível, alimentos, dinheiro? A comunidade branca."
Símbolo dessa nova legitimidade ficou o artigo 9º do Acordo de Alvor. Esse artigo passava a definir como “actos patrióticos” os ataques que em 1961 tinham custado a vida a milhares de pessoas em Angola: “Com a conclusão do presente acordo consideram-se amnistiados, para todos os efeitos, os actos patrióticos praticados no decurso da luta de libertação nacional de Angola, que fossem considerados puníveis pela legislação vigente à data em que tiveram lugar.” Uma formulação que contribuiu naturalmente para a crescente intranquilidade de milhares de pessoas em Angola pois, independentemente da amnistia, elevar à qualidade de “actos patrióticos” o que sucedera nos ataques às fazendas em 1961 não deixava dúvidas sobre o que, em nome do patriotismo, lhes podia suceder agora em 1975. (Mais preocupados teriam ficado se conhecessem o teor do anexo secreto a este acordo que deixava nas mãos dos movimentos decidirem o destino daqueles que eles entendessem que tinham colaborado com as autoridades coloniais.)
Um ano e um mês depois do Acordo de Alvor, o governo do
MPLA nacionalizou e confiscou todas as empresas, bens e propriedades
consideradas importantes para a "economia de resistência". Os que se
tivessem ausentado de Angola há mais de 45 dias – ou seja a maior parte
dos portugueses – ficavam também sob a alçada desta legislação
A partir de Alvor, Angola tornou-se num beco sem saída para milhares de portugueses, sobretudo se fossem brancos. As próprias especulações em torno do seu destino começam a ser usadas como uma arma entre os movimentos. O MPLA vai por exemplo acusar a UNITA de ter assassinado “Todos os brancos de Balombo” e num eco do ataque às fazendas em 1961 surgem acusações de antropofagia à FNLA.Pouco a pouco torna-se claro que seja qual for posição que tomem face a esses movimentos acabam invariavelmente transformados em alvos preferenciais e estratégicos nas sangrentas disputas que os opõem.
Trocam-se maços de tabaco por automóveis…
O sucedido em Nova Lisboa, em Outubro de 1975, é um bom exemplo da ratoeira para que foram conduzidos os angolanos. A cidade é controlada pela UNITA e pela FNLA que naquela cidade também integrava a facção Chipenda, ex-MPLA. Ao contrário do habitual, dali chegam reportagens feitas com algum detalhe. O facto de o MPLA não estar directamente envolvido no que sucede em Nova Lisboa explica em grande parte esta maior disponibilidade por parte da imprensa portuguesa para dar conta dos desmandos dos movimentos e da sua absoluta falta de preparação para governar.Metade da população branca de Nova Lisboa nascera em Angola e não pensava de modo algum deixar a terra que considerava sua. Rapidamente a vida torna-se-lhes num inferno: quando se deslocam confrontam-se com milícias, no caso sobretudo da UNITA, que lhes exigem provas da sua filiação. As represálias por não ter o cartão certo sucedem-se. Os casos de tifo, cólera e tuberculose aumentam.
Metade da população branca de Nova Lisboa nascera em
Angola e não pensava de modo algum deixar a terra que considerava sua.
Rapidamente a vida torna-se-lhes num inferno.
O Banco de Angola em Nova Lisboa é assaltado por um grupo associado à FNLA/Chipenda que depois de usar as armas para neutralizar os funcionários recorre a um maçarico para abrir o cofre donde terão sido retirados milhares de contos. Não porque os movimentos tivessem qualquer dificuldade em levantar dinheiro (a UNITA já recorrera às armas para explicar aos funcionários daquela instituição bancária que a confirmação das assinaturas era uma formalidade que não se lhes aplicava) muito provavelmente para que os rivais ficassem privados daquele financiamento.
Os militares portugueses limitavam-se a esperar por reforços que não chegavam e pelo momento de eles mesmos embarcarem. Em inferioridade numérica e humilhados em episódios como o do batalhão em cuecas (no Moxico, a UNITA maltratou e despojou de tudo inclusivamente de roupa e sapatos uma unidade das Forças Armadas) tinham perdido qualquer capacidade operacional.
Em Nova Lisboa, os refugiados (maioritariamente brancos
mas não só) e as tropas portuguesas acabam a servir de escudo humano
entre a UNITA e a FNLA.
Em Nova Lisboa, os refugiados (maioritariamente brancos mas não só) e as tropas portuguesas acabam a servir de escudo humano entre a UNITA e a FNLA. A sua presença é vista como uma garantia de que a cidade ainda mantém as estruturas mínimas em funcionamento e não se chega (por enquanto) à guerra total pelo controlo dos três quartéis existentes na cidade, do bairro militar e do aeroporto que a UNITA considera vital para a sua sobrevivência.
Impedir a partida das dezenas e dezenas de milhar de pessoas que se acumulam nas instalações da Feira Industrial, das escolas e edifícios públicos de Nova Lisboa é uma ameaça que paira no ar: “Iminente a proibição (pela UNITA e pela FNLA) da saída dos refugiados portugueses que estão ainda em Nova Lisboa” – este título do Diário Popular de 2 de Outubro de 1975 resume a situação a que se chegara pouco antes da data definida para a independência.
Bem podiam a RTP, as rádios e os jornais garantir que "a
calma e a segurança estão a voltar a Angola" e que muitos daqueles que
tinham deixado o território já estavam arrependidos. Estes títulos
militantes são invariavelmente desmentidos pelas pequenas notícias que
os acompanham.
Bem podiam a RTP, as rádios e os jornais garantir que “a calma e a segurança estão a voltar a Angola” e que muitos daqueles que tinham deixado o território já estavam arrependidos. Estes títulos militantes são invariavelmente desmentidos pelas pequenas notícias que os acompanham: “Funcionários de Angola começam a desistir da sua vinda para Portugal” titula a 26 de Agosto de 1975 o Diário Popular para logo linhas abaixo deste exaltante título não só relatar os conflitos em Caxito, Cunene, Luso, Caconda e Matala, como também informar que no dia seguinte, 27, partiam de Luanda dois aviões fretados pelo Banco de Angola “a fim de transportarem famílias dos seus empregados.”
A Longa Marcha
Nas últimas linhas das notícias sobre os tiroteios que invariavelmente acalmam num lado e se reacendem noutro, vemos as colunas dos refugiados a avançar em direcção aos portos, fronteiras e aeroportos. E é precisamente aí, nesse fecho das notícias, que vemos nascer a Longa Marcha. Uma gigantesca operação que traria por terra milhares de portugueses de Angola até Portugal. Mais de 3500 portugueses propunham-se atravessar o continente africano em 2000 camiões e 500 automóveis. Ocupariam mais de 200 quilómetros de estrada, teriam de atravessar o Zaire, Congo, o Gabão, os Camarões, a Nigéria, o Níger, a Argélia e Marrocos e daí Tânger. Previam demorar 90 dias nesta travessia.Os camionistas que se propunham organizar a Longa Marcha dão conta de como em poucos meses mudou a atitude dos portugueses de Angola: em Novembro de 1974 fizeram greve. Exigiam que lhes fosse garantida segurança para trabalhar e que os militares Rosa Coutinho, Pezarat Correia e José Emílio da Silva deixassem Angola. Em Junho de 1975 os camionistas já só exigem que os deixem partir a eles, ao volante dos seus camiões.
Declarar a sua oposição à Longa Marcha deve ter sido uma das raras decisões em que membros do Governo de Transição de Angola conseguiram a unanimidade dos presentes. Almeida Santos define este projecto como “uma utopia”. Melo Antunes considera que o Goveno português não os devia estimular a deixar Angola e sim ajudá-los a permancer em Angola. A Longa Marcha nunca aconteceu com a dimensão inicialmente prevista embora alguns camionistas tenham efectuado esssa viagem. O que Lisboa não previa é que outra marcha muito mais longa ia acontecer. Chamou-se ponte aérea.
A quarta força encaixotou o que pôde e decidiu partir.
Por terra mar ou ar, a quarta força deixou Angola.
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